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VI

Três anos depois cá estava eu. Deitada em minha cama dura, em nosso quarto frio e sem vida. Longos três anos se passaram. Nunca estudei tanto igual eu estudava nesses últimos meses. Fiz uma promessa a mim mesma que me mostraria capaz de lutar pelos meus irmãos e pela minha vida.

Era ano de vestibular, minha herança estava presa e eu não sabia nem por onde começar. Se eu passasse na faculdade federal conseguiria um estágio na advocacia da família. Mesmo que fosse apenas para pegar café para os advogados. Precisava de um emprego mais digno, ou qualquer emprego que me pagasse um salário. E para isso precisava passar no vestibular.

- Nancy! – Revirei os olhos. No mínimo Thomas estava arranjando confusão de novo. Desde que nos mudamos para cá, três meninos implicavam com ele sempre que podiam. Bennet não fazia nada.

Eu intervia na situação, mas chegou a um momento que ele não queria minha ajuda. Ele dizia que já era homem e precisava se virar sozinho. Apenas não me envolvia, mas no final do dia lá estava eu limpando seus ferimentos.

- Thomas? – Passei pelo correndo chamando seu nome. – Thomas, eu preciso estud... – Dei de cara com a Senhorita Bennet.

- Estudar? – Ergueu uma sobrancelha arrumando seus óculos feios. – Você precisa ajudar a limpar o fogão e a cozinha. – Me entregou um esfregão e um balde com água.

- Eu limpo mais tarde. Preciso estudar. Minha vida depende disso... – Minha voz sumiu ao ver sua face zangada.

- Depois de tudo que fiz é assim que me agradece? Não sente vergonha? – Fiquei muda a seguindo até a cozinha. Antes que eu sumisse de sua vista ela alertou. – Cuide de seus irmãos. Parecem animais brigando. – Bennet uma mulher rechonchuda de cabelos vermelhos nos tratava de um jeito diferenciado. E não digo de um jeito bom.

- Sophie. Thomas. – Eles estavam agarrados um puxando o cabelo do outro. – Já disse para pararem. – Os separei. – Bennet está uma fera. Nem me deixou estudar. – Baixei os olhos suspirando. – Gente vocês sabem o quanto isso é importante para mim. – Conferi se ninguém estava por perto nos ouvindo. – Querem sair daqui ou não? – Vi um sorriso se espalhar em seus rostos. – Então para isso preciso que se comportem e me ajudem com as tarefas. – Pisquei.

- Por que temos que fazer isso? – Perguntou Sophie na inocência.

- Porque ela não quer que eu estude e mude de vida. Vocês querem sair daqui e eu também. E para isso preciso da ajuda de vocês. Isso é importante. – Eles assentiram concordando ao estender as mãos para baixo e depois para cima em sinal de força de guerra.

Aquela semana foi bem corrida. A Senhorita Bennet foi bem cruel. Ela me deu mais serviços do que poderia suportar. Meus irmãos me ajudaram a concluir minhas tarefas. Sempre que ela saía eles corriam para me ajudar. Só tínhamos que tomar cuidado para não sermos pegos, aposto que ela tinha vários espiões nos vigiando.

Com o tempo comecei a pensar que ela não queria que eu estudasse. Não queria que saíssemos de seus cuidados ou que mudássemos de vida.

Faltava uma semana para o vestibular e eu ia conseguir passar por isso.

Charlotte Miller, minha mãe, acreditava em mim. Então não havia motivos para não acreditar em mim mesma.

Eu me sentia tão perdida às vezes, querendo correr para os braços de minha mãe, com a única vontade de desistir de tudo e fazer o que Bennet mandava. Mas aquela mulher de olhos grades por trás daqueles óculos horrorosos não iria desistir até me ver destruída.

Digamos que fosse imaginação da minha cabeça..., mas e se não fosse?

Droga!

Eu me odiava, e me odiava mais ainda por querer desistir, odiava meus irmãos por brigarem feito animais, odiava Bennet e odiava meus pais por terem me abandonado desse jeito, nesse lugar horrível.

Em tão pouco tempo nossa vida virara de cabeça para baixo.

Droga! Mil vezes droga!

Como eu podia odiar meus irmãos e meus pais? A culpa não era deles e eu me sentia péssima por pensar que Bennet era uma mulher horrível, talvez fosse mal-amada. E tinha que parar de achar que ela queria nos destruir.

Dois dias para o vestibular.

A cada dia a Senhorita Bennet pegava mais em meu pé. Já estava ficando cansativo sua tentativa de me parar. Ainda bem que Thomas e Sophie entendiam a situação que ela nos colocava.

Sobre largar o pensamento que ela fazia de tudo para me destruir, havia voltado com força total.

Não é minha culpa! É a pressão social que eu mesma jogava em meus ombros.

- Nancy! – Gritar meu nome era música para seus ouvidos. – Nancy! – Nancy faz isso. Nancy faz aquilo. Nancy. Nancy.

Argh!

Minha cabeça doía. Só precisava de dois dias de paz.

Dois!

- Nancy, quero que fique com as crianças no sábado. – Vi seus olhos escuros por trás de seu óculo de grau ficarem opacos.

- Não posso. Sábado tenho compromisso. – Falei levantando da cadeira de madeira do meu quarto.

- Você ainda tem dezessete anos. Eu mando em você. Então faça o que mandei! – Saiu fechando a porta com força. Estreitei meus olhos irritada. Abafei outro grito de desespero no travesseiro.

- O que foi Nancy? – Perguntou Peg ao entrar no quarto. – Aconteceu algo?

- Não. – Falei entre dentes.

Peg era uma das órfãs que dividia o quarto com outras meninas. E era minha amiga, tinha cabelos curtos num tom escuro. Usava óculos de grau igual da Senhorita Bennet. Era a órfã mais velha do local. Tinha uns vinte anos. Eu sei que por lei temos que ficar no orfanato até a maioridade. Mas Bennet a deixou ficar se ajudasse com as tarefas, assim aguentava tudo o que Bennet mandava.

- Só não acredito que meus pais queriam que ficássemos com ela. Ela é um monstro. – Sentei na cama bufando de raiva lançando algumas roupas no chão.

- Não a culpe. Ela ajudou vocês. – Comentou Peg mordendo uma maçã.

- Onde conseguiu isso? – Ela olhou para a maçã rindo para mim.

- Se Bennet não descobre, Bennet não briga. – Só Peg para me fazer rir numa situação dessas.

Peg era muito audaciosa. Bennet não permitia que comêssemos tudo o que quiséssemos. De acordo com ela, apenas o básico já estava bom. Sabe aquele básico de não morrer, pois bem, nada além disso. Afirmava que era para manter uma dieta saudável e balanceada, já que muitos casais não adotavam crianças feias ou acima do peso. Que irônico, vindo justamente dela.

- Obrigado. – Peg me deu um pedaço de sua maçã meio azeda, minha preferida. – Faz muito tempo que não como uma tão gostosa. – Sorri.

- O que vai ter sábado? – Olhei erguendo uma sobrancelha para ela. – Qual é, o orfanato inteiro escutou.

- Por que você ainda mora aqui? – Perguntei sentando ao seu lado.

- Não tenho família. Não existe outro lugar para mim. – Outra mordida na maçã, parecia que ela não se importava de ficar ali conosco, com ela.

- Peg, não é porque ninguém nos adotou que não temos para onde ir. Já pensou em arranjar um emprego digno? Você trabalha para Bennet, mas não ganha por isso. Ganha apenas comida e moradia. Por que não arranja um turno como garçonete ou estuda para passar numa faculdade? – Apertei seu ombro a encorajando.

- Eu vou pensar. – Ela não tinha que pensar por mim, mas sim por ela. Era a vida dela que estava em jogo. A minha eu já estava tentando ganhar fazia um tempinho. – E você o que tem no sábado? – Repetiu.

Bennet roubou meu cavalo, mas vou roubar sua torre.

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