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V

Acordei ofegante em meu quarto sem vida, no orfanato da Senhorita Bennet. Desejei que ao menos uma única vez, eu não acordasse encarando aquelas paredes mofadas.

Minhas mãos se encharcaram de suor quando limpei minha testa. Acendi a luz do abajur podendo ver Thomas e Sophie dormindo. Ver o peito deles subindo e descendo era a melhor coisa que eu poderia ver.

Agarrei meu travesseiro o prensando em meu rosto abafando um grito enquanto eu soluçava ao lembrar de meus pais. Fazia três anos que eles haviam partido.

Que parecia um século.

As memórias que eram impossíveis de serem apagadas rondavam minhas noites, entrando em minha mente, se apoderando de meus sonhos, os tornando um pesadelo. Não havia uma noite sequer em que eu não acordava chorando ou sonhando com o dia que recebia a notícia mais difícil de minha vida.

- Nãoo! – Gritei soluçando ao receber a notícia que meus pais não haviam sobrevivido. Mas e Thomas e Sophie?

O observei limpar um dos olhos com um lenço branco encardido.

- Vocês perderam o velório. Aconteceu há quatro dias. Sinto muito. – Suas palavras eram frias e penetrantes, não parecia haver sentimento nelas, apenas uma notícia a ser pronunciada.

Vocês... Era um bom começo.

Sentei na cama com muita dificuldade e dor no corpo todo, principalmente em meus braços e minha cabeça que não parava de latejar desde que tinha aberto os olhos.

- Como já aconteceu? – O advogado sentou-se ao meu lado pegando em minha mão. Assim, como suas palavras, suas mãos eram frias e eu a puxei de volta. Não queria contato humano, não queria sua piedade, nem seu luto.

Não queria sentir nada.

- Você ficou apagada por uma semana... – Ele baixou os olhos. – Seus irmãos já acordaram. Estão em observação. Espero que se recupere. – Graças a Deus... Senti uma parte aliviada por saber que meus irmãos estavam bem.

Pelo visto meus pais ficaram em coma por três dias antes de falecerem.

- Mas e agora? – Perguntei antes que Mason me deixasse sozinha no quarto do hospital, com aquelas máquinas barulhentas e o cheiro de remédio.

- Infelizmente nenhum parente se ofereceu para cuidar de vocês até você atingir a maioridade. – Sério? Joguei meu corpo para trás deitando a cabeça no travesseiro.

Isso não podia estar realmente acontecendo.

Acorda Nancy! Acorda Nancy!

ACORDA!

- Não, não, não. Isso só pode ser um pesadelo. – Murmurei para mim mesma. – Então para onde vamos? Nenhum tio ou tia? – Ele negou com a cabeça. Frustrante.

Mason parecia ter envelhecido desde a última vez que tínhamos o visto, agora seus cabelos estavam mais grisalhos, olhos mais escuros e opacos, mas sempre com o mesmo sorriso torto.

- Vão morar com a Senhorita Bennet. Ela é uma boa pessoa e seus pais eram amigos. No testamento diz que se ninguém quiser tomar conta de vocês, então a Senhorita Bennet irá. – Por vontade própria, lágrimas escorriam por meus olhos sem permissão.

Talvez ter dito que não querer passar o aniversário com os parentes, fez efeito imediato e duradouro.

- Não temos outra opção? – Passei a mão nos meus cabelos com dificuldade.

Vi que um de meus braços estavam enfaixados igual minha cabeça, acho que tive sorte por não ser nada pior.

- Não. Sinto muito. – O advogado Mason saiu do quarto fechando a porta. Ele parecia ter uns cinquenta anos. Trabalhava na advocacia da família há muito tempo.

Mason fazia parte da família e eu confiava nele. Lamentei a morte dos meus pais e lamentei não ter ido ao velório. E lamentei mais ainda, por não poder ter ido junto com eles.

- Mamãe, papai. – Apertei meus olhos com as mãos na esperança de parar de chorar. Única coisa que me vinha à mente era à noite na fogueira. Nossa última noite juntos, que ficaria guardado em meu coração pelo resto da minha vida.

Coração... Levei a mão ao meu peito sentindo o pingente de coração. Suspirei aliviada. O abri vendo duas fotos, uma em cada metade. Papai e mamãe. Mais lágrimas escorriam de meus olhos. Um buraco se abriu no meio do meu peito.

É normal estar de luto por anos?

Depois de mais alguns dias aceitamos o fato de que eles não voltariam e concordamos em nos mudar para nossa nova casa – mesmo não tendo escolha.

Nossa casa antiga, a mansão, nosso dinheiro e até mesmo Max ficaram sob a guarda do Estado e nosso curador – que eu ainda não sabia quem exatamente era. Ninguém poderia tocar na herança. E o procedimento para tudo isso era muito longo e demorado, restando apenas não abandonar Thomas e Sophie.

Nunca chorei tanto em minha vida.

Deus, essa dor nunca vai passar?

O clamor que eu gritava aos céus todos os dias antes de me deitar e tentar não pensar naquela noite.

- Sejam bem-vindos. – A Senhorita Bennet nos recebeu com um imenso sorriso. – Nossa querida, você está acabada. – Não fazia ideia como estava meu rosto, mas quem se importa quando estamos de luto?

Tinha um espelho na parede. Meus olhos estavam inchads e sem vida. Thomas não falava uma palavra desde que demos a notícia a ele. Sophie chorava todos os diaa, mas às vezes ela se esquecia das coisas horríveis e agia normalmente.

Como eu gostaria de voltar a ser criança.

- Pensei que fossemos morar na sua casa, não em um... – Engoli em seco. – Orfanato. – Meus irmãos se agarraram ao meu corpo mole me fazendo cambalear.

- Eu moro aqui, bobinha. Então minha casa é sua casa. – Ela parecia feliz. Acho que ela se esqueceu que estávamos de luto.

Eu ainda tinha um braço quebrado. Thomas fraturou as costelas e Sophie quase não sobreviveu. Foi um milagre. Na verdade, nós três fomos um milagre. Com um acidente daqueles não era para ninguém ter sobrevivido. Ninguém...

- Espero que não se importem de dividir o quarto com mais duas meninas. Sophie pode ficar com você e Thomas deve ficar com os meninos. – Thomas agarrou meu braço não gostando da ideia.

- Se importa que fiquemos nós três juntos? – Franzindo a testa, nos olhou por cima dos óculos de grau.

- Seria mais apropriado que cada um dormisse com seu gênero.

- Por favor, não queremos ficar sozinhos. – Sussurrei de cabeça baixa, quase que implorando por sua misericórdia.

- Vou ver no que posso ajudar. – Bennet baixou a cabeça suspirando como se estivesse cansada.

- Obrigada... – Sussurrei firmando uma linha reta nos lábios.

- Logo conhecerão todo o lugar. Banheiros são separados. Três vezes por semana fazemos uma faxina pelo local. Mas por estarem ainda debilitados podem descansar essa semana. – Essa semana? Viramos faxineiros desde quando?

Nessa posição, tínhamos que agradecer por termos onde dormir.

- Vou conversar com Mason e falo com vocês mais tarde. – Bennet nos deixou sozinhos no grande salão.

Crianças curiosas nos espiavam escondidas por detrás das cortinas, janelas e pela longa escadaria – que me pareceu um pesadelo fazer tal esforço.

Sophie correu para o jardim chorando, antes que eu fosse ao seu encontro Thomas agarrou meu pulso olhando para o chão.

- Algum problema Thomas? – Perguntei me ajoelhando diante dele ficando a sua altura. Tirei o cabelo de seus olhos conseguindo ver sua face.

- É por pouco tempo né? – Segurei minhas lágrimas engolindo em seco. Não podia demonstrar fraqueza naquele momento delicado.

- Sim. Por pouco tempo. – Ele retribuiu me abraçado com um gesto apertado. – Agora precisamos dar apoio a Sophie. E cuidar dela com todo cuidado. – Ele assentiu, pensei que fosse ficar parado me esperando, mas pegou em minha mão me seguindo, praticamente guiando nosso caminho.

Sophie se encolheu jogada no gramado. Chupou seu dedinho soluçando entre as lágrimas. A peguei no colo e a abracei forte. Thomas não ficou para trás e logo se lançou em cima de nós. Éramos um.

- Nunca vou abandonar vocês. – Solucei. 

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