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Capítulo 02 – Amor, vida e morte

Ao longo de alguns poucos meses, Raoní e Thaynara cresceram em amizade e no amor. E este amor foi consagrado através do casamento dos dois, mesmo tendo Thaynara uma aparência diferente das demais índias da tribo. E do casamento, uma criança era esperada, mas Raoní não sabia que a sua amada estava para lhe dar o primeiro filho.

Quando você voltar da caça Raoní, eu quero falar uma coisa para você. - disse Thaynara com um brilho diferente nos olhos.

Eu voltarei logo e trarei um presente para você. - respondeu Raoní já levando consigo seu arco e sua aljava1.

O canto de um pássaro chamou a atenção de Raoní. Ele parou e armou seu arco apontando em direção a tenda que Dacota dormia. Alguns que viram a atitude de Raoní ficaram intrigados, afinal o som de um pássaro deveria vir das árvores e não de dentro de uma tenda. E para a surpresa de todos, Dacota aparece imitando o canto de um pássaro, um “Capitão do mato”, enquanto Raoní aponta uma flecha em sua direção.

Você teve muita sorte Dacota, eu não estou com fome agora.

Dacota sorriu e foram juntos para a caça do dia.

Como você sabia que não era um “Capitão do mato”? - perguntou Dacota.

O som vinha de dentro da sua tenda. E como você imita muito bem o canto dos pássaros, imaginei que seria você. Mas não se preocupe, eu não como pássaros. - ambos sorriram.

Não esqueça que eu imito não só o som de pássaros, quer ouvir uma onça… - Dacota falava empolgado.

Dacota então, com muito esforço, deu a sua versão para o rugido de uma onça-pintada, o que não impressionou muito a Raoní; nem mesmo ao Macaco-de-cheiro2 que estava pendurado em uma árvore próxima, olhando com um ar de desaprovação total para aquela onça de duas pernas.

Acho que você pode melhorar. - comentou Raoní.

Como de costume, Raoní e Dacota saíram para mais um dia de caça além dos limites da aldeia. O agora chefe guerreiro da tribo dos Kanaparís, estava no auge de sua força física e preparava a sua tribo para a batalha que, com certeza, ocorreria em breve. A caça era ainda uma maneira de observar se o povo Oniakês estava ou não por perto.

Eles já estavam distantes de sua tribo quando Raoní percebeu algo do outro lado do rio e chamou a atenção de Dacota.

Faça silêncio Dacota. Até uma Anta correndo faz mais silêncio do que você.

O que foi que você viu? - perguntou Dacota.

Veja ali. Do outro lado do rio, um filhote de onça-pintada.

Raoní tira uma flecha de sua aljava e prepara o disparo com o seu arco. Ele anda mais alguns passos e dispara. Sua flecha viaja de uma margem a outra do rio atingindo o caule de uma grande fruta que cai logo ao lado do filhote de onça-pintada. O filhote corre assustado, provavelmente em busca de sua mãe.

Eu pensei que queria acertar o filhote! - disse Dacota.

Não! Eu jamais faria isto.

Um som do rugido de uma onça-pintada ecoa aos ouvidos de Raoní que olhando para a corrida desesperada do filhote comenta com Dacota.

Muito bem Dacota. Agora sim, este rugido está bem melhor.

Dacota responde então com uma voz trêmula.

Não fui eu. Foi ela.

Raoní vira e seus olhos não poderiam ter uma visão mais assustadora. Era uma onça-pintada adulta, provavelmente a mãe daquele filhote, seriam cento e cinquenta quilos de pura arma de combate. Ela olhava em direção a Raoní que assustado com aquela visão ficava imóvel. Ele olha para Dacota que lentamente tenta alcançar uma faca que trazia em sua cintura.

A onça estava em tremenda vantagem. De cima de uma pequena elevação poderia atacar a ambos facilmente. Tendo o sol em sua retaguarda, a sua vantagem só aumentava pois o brilho ofuscava a visão de Raoní. O ataque dela seria feroz e eficaz. O som de sua respiração ofegante era ouvido. Ela parecia ansiar por uma refeição já naquela hora da manhã.

Ela desceu indo rumo a Raoní que colocava seu arco no chão na tentativa de se preparar para um combate homem contra fera, pois pela distância não daria tempo de preparar o seu arco. Ela aproximou ainda mais de Raoní e rugiu bem próximo ao seu rosto. Entretanto, para surpresa de Raoní e de Dacota, a onça começa a cheirar o rosto de Raoní. Ele sentiu o hálito daquela onça. Ela passa a cheirar o seu cabelo e seus braços e em seguida, fica parada a sua frente. Raoní, agachado, finalmente olha para os olhos daquela que o encarava, ele não conseguia mais desviar o seu olhar. Percebeu que os olhos daquela onça tinham cores diferentes, um era azul, já o outro mais esverdeado. Sua feição era de fúria, mas Raoní não poderia esperar um ataque dela e já preparava o seu, seria com as suas próprias mãos e com a ajuda do seu fiel escudeiro.

Dacota suava frio, mas não permitiria que algo acontecesse com o seu grande amigo. Seu coração palpitava freneticamente. Ele já tinha em sua mão a faca, retirada de sua cintura no momento em que a onça-pintada caminhava para perto de Raoní. Dacota era um grande guerreiro, ficava apenas atrás de Raoní no uso das armas de guerra e habilidades de luta. O destino era incerto, contudo, a luta seria necessária; o sangue estava eminente.

Dacota preparava suas pernas para um salto no pescoço da onça, teria que ser rápido, não poderia errar, seria a vida de Raoní ou a sua, mas em seu coração dizia que era a onça que teria que morrer. Foi quando um outro rugido é ouvido, mas desta vez, era do filhote que veio em busca de sua mãe. Ao ouvir seu filho, a grande onça-pintada olha mais uma vez para Raoní que desta vez não recusou o seu olhar. A grande onça-pintada volta a subir o pequeno monte e vai ao encontro de sua cria, caminhando juntos, saindo pela vegetação e desaparecendo dos olhares daqueles guerreiros Kanaparís.

Raoní e Dacota ficaram ali sentados, sorrindo um para o outro, pensando em tudo o que poderia ter acontecido com eles. Entretanto, uma pergunta ficava na mente de Raoní.

Por que ela não me atacou? Eu estava ali na sua frente.

Acho que você não tem um gosto bom, você deve estar com “saó”3 - respondeu Dacota com uma grande gargalhada em seguida.

Será que foi pelo seu filhote? Eu não o matei. Então ela retribuiu o favor? - perguntou Raoní.

Talvez. Pode até ser. Mas eu prefiro a minha opinião.

Ambos então levantaram, rindo da aventura que contariam para todos assim que voltassem para casa. Todavia, viram uma nuvem negra que surgia na direção da aldeia, era um grande incêndio.

Ambos correram mais do que as suas pernas poderiam imaginar. No coração de ambos, imaginavam que esta aventura com a onça-pintada poderia ter tirado a atenção deles em relação a verificar se ao Oniakês estavam por perto. Dacota olhava para o céu e via bandos de aves fugindo. Viu até um gavião-real que em seu voo não buscava presas ao alcance de suas garras, mas fugia em desespero batendo suas asas o máximo que podia.

Quanto mais perto da aldeia, mais tinham a certeza de que toda aquela fumaça estava vindo de lá e onde tem fumaça, tem fogo. As labaredas eram enormes e estavam por todas as partes da aldeia. Já de arco em punho e flecha pronta, Raoní e Dacota iniciam seu ataque contra aqueles índios guerreiros pintados de negro e verde. Diferente das demais tribos, aqueles não usavam nada em cores distintas e se misturavam com as folhagens. Contudo, Raoní era o melhor dos guerreiros. Suas flechas transpassavam os corpos daqueles fantasmas, mas eram muitos e sua aljava já estava secando. Não teria como continuar o ataque com flechas. Percebeu logo adiante, junto ao corpo de um dos seus guerreiros, duas machadinhas banhadas de sangue; com certeza aquele guerreiro havia lutado bravamente, Raoní honraria a sua morte.

Agora com as machadinhas em suas mãos, vai em direção ao exército inimigo. Sabia que as suas habilidades o colocariam a prova, mas tinha a certeza de que não decepcionaria seus mestres. A medida que Raoní avançava, um a um caiam mediante seus golpes. Olhava as vezes para o lado e via o seu companheiro Dacota abrindo caminho por entre os Oniakês, as vezes com flechadas, outrora a facadas. Foi quando um nome foi proclamado dentre aquele exército invasor.

Zaltana! - gritou um daqueles.

Sim. O nome que era temido por todas as tribos que encontravam refúgio junto aos Kanaparís. Então, surge aquele cujo o seu nome significa “montanha alta”. Ele é alto, é forte, sua aparência é companheira da morte. Não se vestia como os demais. Suas roupas cobriam quase todo o seu corpo. Sua face era dura, até parecia que os seus olhos não piscavam. Marchava na direção de Raoní, pois aquele que gritou por seu nome apontava para onde ele deveria ir; teria que enfrentar o guerreiro chefe dos Kanaparís.

Alguns metros os separavam, entretanto, haviam muitos guerreiros para enfrentarem até o confronto entre Raoní e Zaltana. Muito sangue seria derramado até o combate que selaria aquele dia. E os dois não perderam tempo e apreçaram em diminuir o espaço e os guerreiros que surgiam de todos os lados buscando, quem sabe, um pouco de glória. Contudo, só encontravam a morte.

Raoní disferiu golpes com as suas machadinhas, eram dois a três golpes no máximo e um guerreiro Oniakês caía morto ao chão. Já Zaltana, trazia em sua mão um tacape4, que quando atingia algum guerreiro Kanaparís, dava para ouvir o som dos ossos sendo quebrados. Clavícula, costelas, crânios, não importava onde o tacape batia, quem era atingido, não levantava mais.

Não havia mais nada nem ninguém entre Raoní e Zaltana. Agora seriam apenas os dois. Todavia, ainda restava uma flecha no arco de Dacota. O disparo foi realizado, o caminho era certo, atingiria o peito de Zaltana. Mas, em uma fração de segundos, Zaltana estende a sua mão para evitar aquela flecha protegendo o seu corpo. A flecha atravessa a palma da mão de Zaltana e atingindo também o seu peito esquerdo. Cabisbaixo, Zaltana olha para aquela flecha em seu peito. Todos os outros guerreiros, tanto os Kanaparís, quanto os Oniakês, ficam olhando Zaltana soltar o seu tacape. Raoní e Dacota percebem que a potente arma está cravejada por alguns dentes arrancados de seus golpes contra alguns guerreiros Kanaparís.

Zaltana balança o seu corpo, o cair dele representa o fim de toda a opressão que os Oniakês tinham sobre todos os povos da região. Contudo, o desejo de Raoní não foi atendido. Zaltana começa a puxar aquela flecha. O sangue jorra do seu peito, mas ele não para. Talvez, se o disparo tivesse ocorrido contra o vento; se Dacota tivesse dado mais um passo em direção a Zaltana, quem sabe a flecha poderia ter atingido em cheio o coração.

Agora a flecha estava no chão. O sangue de Zaltana escorria pelo seu corpo e o ódio estava em seus olhos. De repente um grito agora chama por Raoní, era Thaynara.

Raoní! Socorro!

A “vitória-régia” de Raoní, aquela de pele branca e olhos apertados, sai de sua tenda correndo desesperadamente ao encontro do seu guerreiro, ao encontro do seu amado.

Zaltana está a poucos metros dela e tenta agarrá-la, porém, os cabelos de Thaynara fogem das fortes mãos de Zaltana. Todavia, ele não se dá por vencido, pega o seu tacape e lançando o mesmo com muita força em direção de Thaynara, acerta uma de suas pernas e, com o impacto, ela é suspensa no ar rodopiando uma, duas vezes. Ao despencar como uma fruta madura e pesada, ela cai com o seu rosto voltado para o chão.

Thaynara! - gritou Raoní.

Raoní tem que ser rápido. Zaltana se aproxima de Thaynara e novamente de posse de seu tacape prepara um golpe que pela curvatura que fazia o seu corpo para trás, irá com toda certeza destroçar o crânio de Thaynara. No clímax do ataque de Zaltana, quando Raoní escorregava seus pés no chão na tentativa de chegar perto de Thaynara, um alto rugido é ouvido. Aqueles que assistiam ao combate dos dois chefes guerreiros estavam vendo o saltar de uma onça-pintada, seria a mesma que antes quase esquartejava Raoní e Dacota. Zaltana não teve outra escolha senão tentar se proteger daquele ataque usando o seu braço.

A onça é implacável em sua mordedura. Suas presas penetram o antebraço de Zaltana fazendo com que ele se afaste de Thaynara que ainda está imóvel, deitada no chão. Zaltana tenta golpear a onça com o seu tacape, mas não tem efeito algum. Arrastando a onça até chegar bem perto de uma árvore, juntando todas as suas forças, Zaltana começa a bater a cabeça da onça contra aquela árvore que, depois de alguns golpes, vai perdendo os sentidos e cai sem vida aos pés do seu carrasco.

Raoní está de cabeça baixa, verificando se Thaynara ainda respira. Olha para a perna dela e constata que a mesma está quebrada e que há muita perda de sangue. Ele olha para trás buscando a ajuda do seu amigo Dacota que ainda luta com outros guerreiros e não poderá ajudá-lo no momento, quando então escuta uma respiração ofegante vinda de cima dele. Zaltana está ali, perto demais dos dois, seu aspecto é de quem ainda pode matar e deseja isto em seu coração. Zaltana prepara mais uma vez um golpe fatal, agora sobre a cabeça de Raoní.

O conhecimento em lutas aprendido por Raoní passa como um raio em sua mente. É hora de acabar com aquela batalha. Habilmente, Raoní levanta e vai com toda a sua força contra o corpo de Zaltana que recua um pouco para trás, apenas dois passos, mas o suficiente para que Raoní enrosque a sua perna na de Zaltana fazendo com que o mesmo caia de costas no chão. Rápido como o bote de uma cobra surucucu5, Raoní toma em suas mãos as suas machadinhas deixadas ao lado do corpo de Thaynara.

Raoní agora precisaria atacar de forma certeira o seu oponente. Zaltana começa a levantar e antes que ele tenha tempo de se erguer por completo, Raoní usa a sua primeira machadinha atingindo a região um pouco abaixo da cintura de Zaltana. O grito de dor de Zaltana é tremendo, o golpe atingiu os seus ossos o que faz com que ele fique curvado com um joelho no chão. Agora aquele gigante está preocupado com a sua dor e com isto deixa vulnerável a sua cabeça. Raoní ainda possui uma machadinha. O grito de dor de Zaltana é ouvido por todos os guerreiros em combate, disseram depois, que até os mortos ouviram seus gritos.

Um corpo agora estava servido em frente a Raoní e o guerreiro Kanaparí não poderia vacilar. Usando a perna do próprio Zaltana como apoio, Raoní conseguiu impulso suficiente para ficar em salto, acima de Zaltana. Agora ele tinha espaço para conseguir mais força em seu braço e com uma velocidade descomunal deu seu golpe sobre a cabeça de Zaltana. Pobre guerreiro chefe dos Oniakês. Seus olhos estavam a olhar aquela machadinha descer sobre a sua face atingindo sua testa e um dos seus olhos. O som dos ossos quebrados pelo tacape de Zaltana agora eram trocados pelo som de sua face sendo despedaçada pela machadinha de Raoní. Gritos de vitória foram entoados pelos Kanaparís enquanto o corpo de Zaltana caía mais uma vez no chão.

Raoní volta para perto do seu amor quando pequenas explosões espalham um pó cinza por todos os lados. Era o pajé dos Oniakês criando uma cortina de fumaça na aldeia enquanto seus guerreiros levavam o corpo de Zaltana. A medida que os Oniakês se retiravam da aldeia, o nome de Raoní era dito por todos, até que perceberam que ele estava abraçado a Thaynara, chorando; derramando rios de lágrimas, pela morte do seu grande amor.

1.Estojo que serve para transportar flechas e outros pequenos objetos.

2.Espécie de pequeno macaco de hábito diurno, natural da região amazônica.

3.Mau cheiro.

4.Arma de ataque indígena construída com um pedaço de madeira, sendo um de suas extremidades mais grossa.

5.Maior cobra peçonhenta da América do Sul

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