Leonardo segurava o celular onde uma mensagem de cancelamento brilhava na tela, e seu rosto se contraía num pânico que não conseguia disfarçar.
— Julia, o que foi que você cancelou?
Afinal, para emitir um atestado de óbito, era necessário cancelar todos os dados de identidade.
Julia mantinha aquela expressão serena que tanto conhecia, mas quando ele se inclinou sobre ela, conseguiu vislumbrar as marcas de beijos que se escondiam tímidas sob a gola da camisa. Aquelas manchas avermelhadas a fizeram sentir uma pontada aguda perfurando seus olhos como lâminas.
Ela ergueu o olhar para encontrar os olhos ansiosos do homem e soltou um sorriso melancólico.
— Nada demais, apenas cancelei um jogo. — Ela respondeu, com leveza. — Estava prejudicando minha vista, não queria mais jogar.
— Ah, um jogo... — Leonardo finalmente suspirou aliviado, largou o celular e a abraçou como quem recuperava algo perdido. — Julia, outro dia você não disse que queria fazer compras? Que tal eu te acompanhar?
Julia se sentia vazia, sem humor para fingir alegria. Mas não conseguiu resistir à insistência de Leonardo, que já havia organizado tudo.
Seria remorso pelo que havia feito? Ou apenas o medo de ser descoberto?
Julia soltou um sorriso irônico e assentiu, resignada.
Logo estaria partindo mesmo, não valia a pena criar atritos que pudessem despertar suspeitas desnecessárias.
Durante todo o trajeto, Leonardo se mostrou solícito de uma forma que beirava o exagero, como se cada gesto carinhoso pudesse apagar as traições da noite anterior.
O verão castigava a cidade com seu calor implacável, mas ali estava Leonardo, um presidente de corporação, segurando uma sombrinha sobre a cabeça da esposa como um servo dedicado.
A cena não passou despercebida aos transeuntes, que comentavam com inveja mal disfarçada:
— Nossa, olha só o Sr. Leonardo e a Julia! Que homem mais dedicado, nunca vi coisa igual.
— Quem em Santa Clara não conhece essa história de amor? O Sr. Leonardo é famoso por ser um marido exemplar. A esposa menciona que gosta de cerejas, e ele planta pés de cerejeira no quintal com as próprias mãos. Quando será que vou encontrar alguém assim?
— Exato, a Srta. Julia foi conquistada pelo Sr. Leonardo depois que ele quase morreu tentando, agora ele a trata como se fosse feita de cristal.
Julia contraiu os lábios num sorriso sarcástico. Cada palavra de admiração sobre seu "casamento perfeito" soava como uma piada cruel do destino.
Quando entraram na butique de luxo, a vendedora os recebeu com entusiasmo.
— Senhora, me permita sugerir este vestido. É um dos nossos modelos clássicos mais prestigiados, e com sua silhueta, tenho certeza de que vai ficar absolutamente deslumbrante.
Assumindo o papel do marido generoso, Leonardo declarou com voz carinhosa:
— Meu amor, escolhe tudo que seu coração desejar, não quero que você se preocupe com valores.
Julia estava prestes a responder quando uma voz doce e calculadamente inocente se intrometeu nas suas costas.
— Modelos clássicos são relíquias de décadas passadas, que coisa mais antiquada. — Disse Camila, se aproximando com um sorriso que não chegava aos olhos, enquanto pegava uma peça da nova coleção. — As tendências atuais é que são encantadoras, tão frescas e contemporâneas. Não concorda, Srta. Julia?
Apesar da expressão aparentemente angelical, seus olhos brilhavam com uma provocação tão descarada que chegava a ser grosseira.
Julia a reconheceu imediatamente. Ela era a jovem que havia passado a noite nos braços de seu marido, e agora tinha a audácia de aparecer diante dela como se nada tivesse acontecido.
Então não conseguia mais conter sua ansiedade? Precisava marcar território publicamente?
O semblante de Leonardo se endureceu numa expressão severa, seus olhos lançando um aviso silencioso, mas inequívoco para Camila recuar.
Camila, porém, escolheu ignorar completamente o alerta. Afinal, Julia sempre foi uma pessoa dócil, que mal haveria em provocá-la um pouco? Leonardo sempre a protegia no final, e depois ela saberia como contornar qualquer tensão com seu charme habitual.
Continuou com uma falsa compaixão que mal disfarçava a malícia:
— Ai, como sou esquecida! Quase me esqueço de que a Srta. Julia já completou 26 anos. Essas roupas jovens provavelmente não ficam mais adequadas, né? O corpo muda, é natural... Desculpa se fui indiscreta.
Seus lábios se curvaram num sorriso triunfante, como se tivesse acabado de marcar um ponto decisivo.
Julia observou a cena com calma, estendeu a mão para examinar a etiqueta do vestido que Camila segurava e respondeu com uma elegância cortante:
— Tem razão sobre ser jovem e moderno, é verdade. Pena que só quem possui um gosto questionável confunde imitação barata com qualidade autêntica. Mas compreendo, pessoas com padrões baixos naturalmente se atraem por produtos de categoria inferior. Modinha passa a cada estação, vira artigo de massa que qualquer um pode ter, enquanto um clássico autêntico atravessa gerações mantendo sua distinção.
As palavras atingiram Camila como bofetadas. Julia estava não apenas a chamando de pessoa de baixo nível, mas insinuando que ela própria era um artigo barato e descartável?
O rosto de Camila perdeu toda a cor, e nem a maquiagem aplicada conseguia disfarçar o constrangimento que a consumia.
Voltou-se para Leonardo com expressão de vítima ferida, os olhos rapidamente se enchendo de lágrimas calculadas.
Em situações normais, Leonardo certamente interviria com palavras gentis para acalmar a situação e proteger seus sentimentos feridos.
Mas agora, ele abraçou Julia possessivamente e disse com firmeza:
— Minha esposa tem razão. Clássicos representam elegância atemporal, enquanto modinha barata é simplesmente vulgar.
Camila mordeu o lábio com tanta força que quase o perfurou, seus olhos agora genuinamente marejados de humilhação.
— Tem razão! Eu sou vulgar mesmo, como posso ousar me comparar à refinada Srta. Julia? — Sua voz tremia entre a raiva e o desespero. — A senhora é mimada pelo Sr. Leonardo como uma princesa, enquanto eu... Desculpem, fui presunçosa demais.
Dito isso, girou nos saltos e saiu da loja.
Leonardo acompanhou sua saída com olhos conflituosos. Parte dele se sentia culpado por não defendê-la, enquanto outra parte sabia que Julia tinha razão em seus ataques.
Julia captou cada micro-expressão no rosto do marido, soltou uma risada baixa carregada de ironia, se afastou do abraço dele e caminhou até a vitrine mais cara da loja.
— Quero este aqui. — Ela apontou para o vestido mais luxuoso exposto. — O mais caro que vocês têm.
Leonardo voltou à realidade como quem despertava de um transe, sacou o cartão preto e o entregou à vendedora.
— Debite sem limite, compre tudo que minha esposa desejar.
A funcionária quase não conseguia conter sua euforia profissional.
— O Sr. Leonardo realmente trata a Srta. Julia como uma rainha!
Leonardo forçou um sorriso que não chegou aos olhos.
— É minha esposa, se não a mimo, quem mais mereceria minha dedicação?
Julia curvou os lábios numa expressão que misturava sarcasmo e melancolia, permanecendo em silêncio.
...
Quando saíram da butique, Julia se sentia esgotada emocionalmente. Fez um biquinho involuntário, e Leonardo, sempre atento aos seus humores, imediatamente sugeriu que descansasse num banco enquanto ele comprava seu bubble tea favorito.
Antigamente, aquela atenção aos detalhes a fazia se sentir amada e compreendida. Bastava um gesto, uma expressão, e ele sabia exatamente o que ela precisava.
Agora se perguntava com amargura se ele demonstrava a mesma solicitude com Camila, se conhecia os gostos dela com a mesma intimidade.
Leonardo voltou com o bubble tea já preparado, furou com o canudo e ofereceu:
— Experimenta, ainda prepararam com aquele sabor especial que você adora?
Julia aceitou a bebida com uma expressão turva, deu um gole pequeno e sentiu o sabor familiar inundando sua boca. Tudo continuava igual, exceto a pessoa que oferecia.
Naquele momento, seu celular vibrou na bolsa.
Era uma mensagem de número desconhecido, e Julia sentiu o estômago se contrair ao ler.
[Srta. Julia, gostaria de saber como se sentiu ontem à noite ao presenciar minha intimidade com o Leonardo? Imagino que tenha doído bastante...]
[Vou te contar um segredinho. Todas essas noites em que ele não dormia em casa, estava nos meus braços. Ele é muito apaixonado por mim, sabia? Sempre precisa de uma caixa inteira de preservativos quando estamos juntos.]
Julia leu cada palavra com uma expressão gelada, seus olhos se tornando frios como o inverno.
[Que tal fazermos uma pequena aposta? Garanto que daqui a alguns minutos o Leonardo vai inventar uma desculpa qualquer para te abandonar e vir correndo me encontrar.]
Julia achou que isso não aconteceria. Por mais que Leonardo estivesse traindo, ele ainda sabia distinguir prioridades e não seria tão óbvio a ponto de abandoná-la em público por causa de algumas provocações via mensagem.
No segundo seguinte, ela se sentiu como se tivesse levado um tapa na cara.
Observou seu marido baixar a cabeça para o celular, um sorriso brincando em seus lábios enquanto digitava respostas que claramente não eram relacionadas a trabalho. Depois de alguns minutos, ele guardou o aparelho e se virou para ela com uma expressão de falsa seriedade.
— Julia, surgiu uma emergência no projeto da empresa que requer minha atenção imediata. Vou pedir para o motorista te levar para casa em segurança, está bem, amor?
— Ha... — A risada que escapou dos lábios de Julia soou mais como um suspiro amargo.
Ela relanceou os olhos para o próprio celular, onde ainda podia ver os rastros das conversas íntimas entre os dois, e de repente tudo ficou cristalino.
Então era isso que ele chamava de "emergência empresarial", uma sessão de sexo com sua amante?
— Claro, pode ir. — Ela respondeu com uma doçura venenosa.
Engoliu o gosto metálico que subiu em sua garganta e não fez nenhum movimento para detê-lo.
Leonardo, vendo-a tão complacente e sem fazer os dramas habituais para que ele ficasse, sentiu um vazio estranho se formando em seu peito.
As mensagens continuavam chegando insistentemente, trazendo-o de volta à realidade que o aguardava.
Leonardo se recompôs rapidamente, convencendo-se de que Julia estava sendo compreensiva e madura. Sem permitir que a culpa o perturbasse por muito tempo, ele partiu.
No exato momento em que ele desapareceu de vista, Julia pegou o bubble tea que ele havia comprado e o jogou direto no lixo mais próximo, seus olhos frios como gelo ártico.
Poucos minutos depois, Camila enviou uma foto provocante acompanhada da mensagem: [Quem não é amada de verdade é que vira a amante, Srta. Julia. Olha só como o Leonardo não consegue resistir a mim.]
Julia digitou sua resposta com uma calma assassina: [Perfeito. Lixo atraiu lixo. Que sejam muito felizes na lata de lixo.]
Camila ficou tão enfurecida com a resposta que não conseguiu formular uma réplica por um longo tempo.
...
De volta ao apartamento, Julia continuou metodicamente organizando seus pertences.
Retirou cuidadosamente do armário seus livros de design gráfico e as pastas repletas de rascunhos e projetos. Eram seus verdadeiros tesouros, testemunhas silenciosas de sonhos que havia sacrificado no altar do casamento.
Se não tivesse escolhido se casar com Leonardo, talvez hoje fosse uma designer reconhecida, talvez tivesse construído a carreira que sempre havia desejado.
O peito se apertou com uma mistura de nostalgia e arrependimento, mas logo se recompôs. Ainda havia tempo de recomeçar, ainda podia resgatar os sonhos que havia enterrado.
Arrumando um pouco a cada dia, alguém verdadeiramente atento notaria as mudanças graduais.
Leonardo, porém, estava tão absorto em suas aventuras extraconjugais que não prestava atenção em mais nada ao seu redor.
Depois de organizar mais uma parte de seus pertences, Julia se dirigiu ao calendário de parede e marcou um X vermelho no dia 25.
Leonardo, restavam 28 dias.
O som de chaves na fechadura anunciou o retorno dele, provavelmente satisfeito após seu encontro clandestino.
Quando empurrou a porta do quarto e a encontrou parada diante do calendário, algo naquele X vermelho o fez sentir um arrepio inexplicável percorrer sua espinha.
Leonardo se aproximou e perguntou com uma ansiedade inexplicável:
— Julia, por que você está marcando essas datas? O que significa isso?