Treze anos se passaram desde que Margarida conheceu Augusto, quando ela tinha apenas oito anos. Durante todo esse tempo, não importava a situação, Augusto sempre acreditou nela incondicionalmente, permanecendo ao seu lado.
Mas agora, aquela farsa descarada de Leonor era tão grosseira e mal executada que causava constrangimento a qualquer um que presenciasse a cena.
Talvez Luísa não percebesse as entrelinhas daquela drama, mas Margarida não conseguia acreditar que Augusto não tivesse notado algo errado naquela história toda.
No entanto, Augusto apenas encarava Margarida com uma intensidade perturbadora. Após um silêncio que pareceu durar uma eternidade, ele recuou alguns passos e se posicionou ao lado de Leonor, entrelaçando seus dedos nos dela num gesto que atravessou Margarida como uma lâmina afiada.
— Margarida, vou dizer pela última vez. — Declarou ele. — Devolva os sapatos e peça desculpas à Leonor.
A convicção na voz de Augusto deixou claro que ele acreditava plenamente na versão de Leonor. Com sua postura inabalável, as pessoas, que até então hesitavam em tomar partido, agora pendiam novamente para o lado de Leonor, convencidas de que Margarida insistia na mentira por pura teimosia.
Na sala mergulhada em um silêncio opressor, todos se aglomeravam ao redor de Leonor, oferecendo apoio e solidariedade com palavras sussurradas e gestos reconfortantes.
Enquanto isso, Margarida permanecia sozinha, uma ilha de desgraça, isolada e sem uma única alma ao seu lado.
Ela observava tudo com uma lucidez dolorosa, consciente de cada olhar acusador, cada cochiche maldoso. Por algum motivo, porém, a dor física que sentia antes havia desaparecido, dando lugar a um vazio gélido.
A verdade estava clara. Augusto havia escolhido Leonor e o casamento arranjado que garantiria seu futuro.
Todos os sentimentos que Margarida nutrira por ele durante três longos anos, todo o esforço sobre-humano para estar ao seu lado, para ser digna dele... No fim das contas, tudo se revelava um grande e patético desperdício diante do poder e do status.
Leonor certamente conhecia essa verdade, e foi exatamente por isso que, ao descobrir o envolvimento entre Margarida e Augusto, decidiu orquestrar aquele espetáculo vergonhoso na mansão da família Carvalho. Era seu jeito de esfregar na cara de Margarida que ela não possuía mais Augusto, nem mesmo a dignidade.
Era o momento de Margarida finalmente aceitar a realidade e se dar por vencida.
Mas, por uma ironia deliciosa do destino, Margarida se recusava a aceitar esse papel de derrotada.
Ergueu o queixo devagar, num gesto de desafio silencioso, ignorando todos os olhares críticos ao seu redor. Com passos mancos e doloridos, ela se abaixou para pegar o celular que havia arremessado ao chão minutos antes. Sem desviar os olhos dos de Augusto, discou diretamente para o número da polícia.
— Sr. Augusto. — Começou ela, com uma calma surpreendente. — Eu não vou pedir desculpas. Vou chamar a polícia.
O rosto de Augusto escureceu num instante, como céu antes de temporal. Os músculos de seu pescoço se retesaram e as veias pulsavam visivelmente sob a pele, mas nada disso abalou Margarida.
Quem entrou em desespero foi Leonor, que rapidamente correu o olhar pelo salão, buscando alguma saída para seu plano desmoronando.
Foi naquele momento que um motorista surgiu apressado, segurando um par de sapatos de cristal.
— Senhorita, seus sapatos estão aqui! — Anunciou ele, ofegante. — Eu a vi perto do lago de carpas. Como os sapatos estavam largados, achei melhor guardá-los para evitar qualquer acidente. Me perdoe pelo mal-entendido!
— Então foi você quem pegou meus sapatos! — Leonor exclamou, com indignação. Lançou um olhar fulminante ao motorista, antes de se voltar para Margarida com uma expressão falsamente constrangida. — Margarida, mil perdões! Jamais imaginei que meu motorista fosse interferir dessa maneira. Mas você compreende, não é? Esses sapatos têm um valor inestimável para mim. Você não quer prejudicar a imagem da família Carvalho por causa de um simples mal-entendido, quer?
O pedido de desculpas soava tão falso quanto nota de três reais, carregando um toque sutil, mas inegável, de ameaça.
Para os espectadores desavisados, parecia que Leonor humildemente reconhecia o erro, o que lhe conferia um ar de nobreza e dignidade. Ao mesmo tempo, sugeria que Margarida deveria engolir o sapo e evitar causar mais alvoroço.
Era evidente que, se a polícia aparecesse ali, seria um escândalo para todos, inclusive para Leonor. Por isso ela se mostrava tão desesperada para silenciar o caso.
Margarida compreendia essa dinâmica, mas sequer se dignou a olhar para Leonor. Manteve o olhar fixo em Augusto, com um sorriso irônico, quase doloroso.
— Sr. Augusto, você não estava absolutamente certo de que eu havia roubado algo que não me pertencia? Agora que a verdade veio à tona, não se sente um tanto envergonhado? Mas, no fundo, essa situação toda me ensinou algo valioso. — Margarida caminhou devagar até o motorista e encarou os sapatos de cristal, destilando desprezo em seu olhar. — Coisas que não me pertencem, eu realmente não deveria cobiçar. Depois que a ilusão se desfaz, não passam de lixo reluzente.
Os sapatos eram deslumbrantes e cintilantes, mas frios e desconfortáveis.
Exatamente como Augusto.
Na fria e hostil mansão da família Carvalho, Margarida acreditara que ele era seu único refúgio, sua exclusiva fonte de calor humano em meio à gelidez dos olhares alheios.
Por isso, mesmo se anulando e renunciando a tudo o que amava, ela se forçou a se tornar obediente e sensata, tudo para ficar ao lado dele.
Mas Augusto não era gentil, nem amoroso, e certamente não valia o sacrifício que Margarida havia feito de sua própria essência.
Se ele desejava se casar com Leonor, que o fizesse. Margarida finalmente estava pronta para soltar aquela ilusão, sem olhar para trás.
Com um sorriso sereno que parecia se iluminar de dentro para fora, Margarida olhou para Augusto uma última vez. Seu rosto já não exibia a mágoa e o ressentimento que antes sombreavam seus traços delicados, apenas a leveza cristalina de quem cortou as amarras que a prendiam a um sonho que nunca foi seu.
Augusto cerrou os punhos ao testemunhar aquela transformação, os tendões saltando sob a pele como cordas de violão tensionadas ao limite. A respiração dele ficou visivelmente alterada, como se algo precioso estivesse escapando por entre seus dedos.
Depois de um silêncio carregado de significados não ditos, ele finalmente se dirigiu a Margarida e declarou com frieza:
— Vamos encerrar isso por aqui hoje. Margarida, devolva os sapatos de cristal para a Leonor.
A chamada para a polícia já havia sido interrompida no exato momento em que o motorista irrompeu na sala com os sapatos na mão, oferecendo sua explicação improvisada.
Sempre atenta para proteger o prestígio da família, Luísa havia tomado o celular de Margarida e desligado a chamada imediatamente. Para ela, a reputação do marido e do enteado valia mais que qualquer princípio de justiça. Por isso, Augusto julgava que era hora de baixar a poeira sobre aquele desagradável episódio.
Margarida acenou com um sorriso enigmático que permaneceu intacto em seus lábios. No entanto, quando Leonor se aproximou com a mão estendida para recuperar seus preciosos sapatos, Margarida os segurou com firmeza. Então, num movimento inesperado que paralisou todos os presentes, os jogou com toda a força contra a parede.
Um estrondo ensurdecedor ecoou pelo salão quando o delicado objeto colidiu com a parede.
Leonor soltou um grito agudo, seus olhos arregalados de horror, completamente fora de si.
— Margarida! Você enlouqueceu de vez? — Sua voz tremia de indignação. — Esse par de sapatos é o símbolo sagrado do meu compromisso com Augusto! Como teve a ousadia de destruí-lo?
— E por que não deveria? — Indagou Margarida, limpando as mãos. — Você me acusou injustamente diante de todos. Achou mesmo que poderia sair ilesa depois de tentar destruir minha reputação?
— Mas eu já pedi desculpas! — Protestou Leonor, a pose de dignidade desmoronando diante da preciosidade perdida.
— Ah, é? — Margarida inclinou levemente a cabeça, os olhos faiscando. — E de que adianta sua desculpa esfarrapada? Vale quanto, exatamente?
— Margarida! Como ousa falar assim com a Srta. Leonor? — Luísa avançou, horrorizada, tentando conter o tornado que sua filha se tornava.
Margarida ficou em silêncio por um instante, encarando a mãe com um olhar frio antes de responder:
— Eu falo assim mesmo, mãe. A idade já está pesando tanto que seus ouvidos pararam de funcionar? Que curioso. Quando estavam me acusando injustamente, você ficou aí plantada como um móvel da casa, fingindo que nada tinha a ver com sua própria filha. Será que realmente acredita que se rebaixar para os outros e atacar quem saiu do seu ventre vai te garantir algum respeito nesta família? Claro que não. Porque se realmente te respeitassem, ninguém teria me humilhado dessa maneira tão cruel. E se a Leonor te respeitasse, não teria feito questão de me usar como capacho logo no primeiro dia na mansão da família Carvalho, transformando minha dignidade em troféu para exibir aos outros...
Antes que pudesse terminar, um tapa estridente cortou o ar e atingiu seu rosto, interrompendo-a bruscamente.
Margarida cambaleou com o impacto violento. Quando conseguiu erguer os olhos, viu Augusto parado diante dela, a respiração pesada, a expressão sombria repleta de uma fúria que ela jamais testemunhava antes.
O silêncio que se seguiu era quase evidente. Ele não havia movido um músculo quando Margarida confrontou Luísa, mas bastou ela desafiar Leonor para que reagisse com violência brutal.
Naquele instante, uma voz masculina, firme e imponente, cortou o ar como um trovão:
— O que está acontecendo aqui?
O tempo pareceu congelar. Todos os presentes se voltaram, surpresos, para a origem daquela voz autoritária.
Antes Carlos estava no andar superior imerso em assuntos empresariais, agora se encontrava parado na entrada da sala, observando a cena com severidade. Seus cabelos já exibiam alguns fios prateados nas têmporas, mas os olhos permaneciam afiados e penetrantes como os de uma águia em pleno voo.
Augusto herdava os mesmos traços marcantes do pai, porém com um olhar habitualmente mais suave, agora ostentava um semblante cheio de sombras que o tornava irreconhecível.
— Pai, eu resolvo isso. — Declarou ele, com a voz tensa. — Margarida, eu estava disposto a deixar essa situação para depois por consideração à presença da Leonor, mas agora está evidente que você é teimosa e não reconhece limites. Não tenho mais razões para adiar. Pedro, traga o castigo da casa!
Com a expressão impassível, Pedro imediatamente entregou um galho grosso e inflexível nas mãos de Augusto. Aquele objeto simples, porém carregado de significado, era conhecido como o instrumento de disciplina da tradicional família Carvalho.
Num ímpeto maternal tardio, Luísa chegou a avançar um passo. No entanto, ao cruzar olhares com o marido, empalideceu como papel e recuou.
Leonor, por sua vez, se aproximou com a elegância calculada de uma cobra, um sorriso de satisfação mal disfarçado dançando em seus lábios delineados.
— Margarida, não ponha a culpa no Augusto. — Sussurrou ela, com falsa compaixão que não alcançava seus olhos. — Você quebrou os sapatos de cristal e me desrespeitou na frente de todos. Ele está no direito de demonstrar sua indignação. Vai ser edificante você sentir na pele as consequências de ousar me desafiar.
Com o rosto já inchado pelo tapa recebido, Margarida ouvia cada palavra com atenção. Mas, contrariando todas as expectativas, um sutil sorriso irônico floresceu em seus lábios machucados.
— Você está ansiosa para me ver humilhada, não é mesmo, Leonor? Ah, só que existe um detalhe que você não considerou... Graças à sua crueldade, finalmente decidi usar aquele favor que jamais pensei em cobrar.
O rosto de Leonor ficou tenso, a compreensão súbita apagando qualquer traço de triunfo de sua expressão.
No segundo seguinte, passos firmes e decididos ecoaram pelo corredor. Um calafrio coletivo percorreu a espinha de todos os presentes, como se o próprio ar reconhecesse a chegada de uma nova força.
Quando todos os olhares convergiram para a entrada do salão, uma figura alta e imponente se materializou contra a luz dourada do sol poente que invadia a mansão. Seus traços eram marcantes e precisos, esculpidos com a perfeição que apenas a genética privilegiada ou o cinzel de um gênio renascentista poderiam conceber. O rosto aristocrático exibia uma beleza severa, quase assustadora em sua perfeição.
Era Vicente Almeida, o presidente do poderoso Grupo Almeida, atualmente o homem mais influente nos círculos comerciais e sociais de Santarino.
Sua mera presença bastava para silenciar qualquer ambiente, enquanto seus olhos escuros e penetrantes, que pareciam enxergar além das aparências, se fixavam diretamente em Margarida com uma intensidade.
Margarida respirou fundo, reunindo cada fragmento de coragem que ainda restava em seu ser. Sob o olhar atônito de todos, caminhou até Vicente com passos lentos mas determinados.
— Me tira daqui, Vicente. — Pediu ela, com uma voz clara e firme.