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Capítulo 0002

Author: Isabel Cardoso
Mesmo agora, recordando aqueles momentos, meu corpo tremia involuntariamente e meus dentes batiam de forma descontrolada.

Passos apressados ecoaram pelo corredor do hospital antes que Luiz e Fernando entrassem no quarto, um atrás do outro. Milena os acompanhava.

Ela se posicionou no pé da cama, com os olhos ligeiramente avermelhados.

— Srta. Ana, me desculpe. — Disse ela, com voz suave. — Fui muito inconsequente. Vou pagar todas as suas despesas médicas e espero que você consiga me perdoar. Por favor, não guarde rancor de mim.

Sua atitude era completamente diferente da mulher que havia proposto aquela aposta cruel no cruzeiro. Agora ela parecia frágil e arrependida, uma transformação que me deixou ainda mais confusa.

Minha cabeça latejava com uma dor intensa que produzia um zumbido agudo e constante. Fechei os olhos, tentando suportar a agonia, mas para Luiz e Fernando, meu gesto foi interpretado como uma demonstração de ressentimento contra Milena.

Luiz se aproximou da cama e olhou para mim de cima, mantendo aquela calma fria que sempre o caracterizou.

Nem mesmo o fato de eu ter quase morrido na sua frente conseguia despertar qualquer emoção nele. Mas isso não era como ele costumava ser.

Aos dez anos, meu pai me levou a um distrito conhecido por sua vida noturna perigosa. Ele colocou uma rosa vermelha em minhas pequenas mãos e me disse com uma voz estranhamente gentil que eu nunca havia ouvido antes:

— Ana, preste atenção. Você vai com quem pegar esta flor, entendeu?

Não perguntei o porquê, mas fiquei atordoada por um momento ao ver meu pai agindo de forma tão carinhosa.

Quando percebeu que eu não respondia nem acenava com a cabeça, ele ficou cada vez mais nervoso, agarrando meu braço e balançando meu corpo franzino.

Foi então que voltei à realidade e reconheci o pai que eu conhecia. Claro, como ele poderia ser gentil? Ele só sabia beber e apostar, só sabia bater em mim e na minha mãe. Mamãe havia morrido por causa de suas surras, e agora ele me considerava um fardo que precisava se livrar.

Eu havia visto outras crianças como eu, segurando rosas vermelhas, esperando que alguém as pegasse. Quem pegasse a flor levaria a criança, e quem não fosse escolhido acabaria sendo vendido para lugares terríveis.

Pessoas passavam por mim uma após a outra, mas ninguém mostrava interesse em pegar minha rosa. Meu pai ficou cada vez mais irritado, me xingando de inútil e peso morto.

— Eu deveria ter me livrado de você desde o início. — Resmungou ele, com raiva. — Coisa inútil.

Ele começou a me arrastar em direção àquela porta que parecia a entrada do inferno quando, de repente, um jovem pegou a rosa de minhas mãos. Sua expressão era impassível enquanto instruía seus guarda-costas a falarem com meu pai.

Vi meu pai receber um maço grosso de dinheiro, se curvando servilmente enquanto nos observava partir.

O jovem me levou para uma mansão onde contratou tutores para me ensinar a ler e escrever, além de me dar aulas de etiqueta e boas maneiras.

Após aquele dia, não o vi mais por três anos inteiros. Quando finalmente nos reencontramos, eu havia crescido e deixado de ser uma criança esquelética para me tornar uma jovem. Sua expressão continuava a mesma, mas quando me viu, um brilho especial passou por seus olhos.

Foi então que soube que ele se chamava Luiz, e ele me pediu para considerá-lo como um irmão. Aquele foi o início de dez anos ao seu lado, dez anos seguindo seus passos.

Luiz sempre me dizia que, já que ele me havia criado, me protegeria para sempre e nunca permitiria que ninguém me machucasse.

Mas agora ele havia esquecido completamente aquelas promessas, oferecendo sua proteção a outra mulher. Mesmo quando eu quase morri, ele ainda defendia os outros.

— Ana, Milena apenas bebeu demais e se empolgou. — Disse ele, com sua frieza habitual, os lábios ligeiramente contraídos, sem demonstrar qualquer emoção. — Não guarde rancor dela.

Minha garganta estava tão seca que não conseguia falar. Ele franziu o cenho, aparentemente descontente, e quando pronunciou meu nome, havia um tom de impaciência em sua voz.

— Ana, pare de fazer birra.

Então era isso. Meu sofrimento era apenas uma birra aos olhos dele.

Apertei a ponta dos dedos até sentir dor, porque quando uma parte do corpo dói, o coração dói menos. Essa técnica também havia sido Luiz quem me ensinou.

Queria abrir a boca para dizer que não estava fazendo birra, que não estava com raiva, que só queria encerrar nossa relação de uma vez por todas. Mas quando tentei falar, minha garganta ardeu como se estivesse sendo cortada por lâminas, e nenhum som saiu.

Fernando perdeu a paciência, e qualquer vestígio de culpa que pudesse ter sentido desapareceu naquele momento.

— Ana, tem limite para essa encenação. — Repreendeu ele, com irritação. — A Milena já pediu desculpas, o que custa você dizer que está tudo bem? Você acha que é tão especial assim? Não consegue aceitar nem uma brincadeirinha? Após ser sustentada pelo Luiz por mais de dez anos, não aprendeu nada de bom, só desenvolveu esses caprichos infantis.
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