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Capítulo 7

Author: Feijões Barulhentos
Ao voltar do hospital, Rafaela se trancou no apartamento de Camila como quem fechava as portas para o mundo, deixando para trás qualquer ruído externo. Ela mergulhou num sono pesado que se estendeu por um dia inteiro e a noite seguinte.

Quando finalmente abriu os olhos, ela se sentiu como alguém que despertava após atravessar passo a passo um longo pesadelo que parecia não ter fim, um labirinto de cinco anos do qual não acreditava que pudesse escapar.

Sem hesitar, pegou o celular. Os dedos deslizaram pela tela com uma firmeza que não existia antes. Um a um, bloqueou e apagou Henrique, Helena e todo contato que tivesse alguma ligação com a família Amaral.

Cada toque na tela era preciso, quase cirúrgico, como se estivesse eliminando inutilidades para limpar a memória, mas, na verdade, limpava a própria vida.

Quando concluiu, soltou o ar lentamente e percebeu que aquele peso sufocante que a acompanhava durante anos havia diminuído. Não sumia por completo, mas já não esmagava seus ombros como antes.

Camila entrou na sala carregando uma tigela fumegante de creme de aveia, o cheiro suave se espalhando pelo ambiente. Ao ver Rafaela sentada no sofá, desperta, com o olhar mais vivo e nítido do que o habitual, sentiu o travo de preocupação se desfazer, cedendo espaço a um alívio genuíno.

— Acordou? Está com fome? Aproveita enquanto ainda está quente.

Rafaela recebeu a tigela e começou a comer devagar, sentindo o calor se espalhar pelo corpo, passando pela garganta e alcançando até os dedos que antes pareciam frios.

Suspirou. Pela primeira vez em muito tempo, ela se sentia inteira, como se as peças finalmente se encaixassem.

— Camila... — Ela ergueu os olhos, e dessa vez havia neles um brilho diferente, uma firmeza nova que não se via antes. — Pensei bastante. Quero abrir meu próprio ateliê.

Camila quase se levantou num salto, empolgada.

— Finalmente! Passou da hora, Rafa! Com o seu talento, você devia ter feito isso há muito tempo. Já pensou no nome?

Rafaela desviou o olhar para a janela, para a lua crescente que se desenhava no céu com uma luz suave, e respondeu, quase num sussurro que carregava decisão:

— Vai se chamar Ateliê Rafaela.

O nome dela. A vida dela. Finalmente, por e para ela.

Nos dias seguintes, Rafaela mergulhou de corpo e alma na procura por um espaço. Não queria apenas um local para trabalhar, precisava de um refúgio, um território seguro onde pudesse se reconstruir.

Com seu carro vermelho chamativo, Camila não deixou que Rafaela fosse sozinha em nenhuma das visitas. Juntas, percorreram cada canto de Belmira.

Começaram pelo coração do centro financeiro.

Os arranha-céus de vidro refletiam o cenário ao redor, duplicando o brilho frio da cidade. As palavras do corretor sobre "ponto estratégico" e "chance de networking" ecoavam, mas soavam ocas.

Rafaela caminhou até a janela panorâmica, observou de cima os carros pequenos e apressados, as pessoas transformadas em pontos microscópicos lá embaixo, e sentiu uma pressão lhe fechar o peito.

Ali, o ar cheirava a dinheiro e ambição, exatamente o mundo do qual passava anos tentando se livrar.

— Não serve. É barulhento demais. — Ela disse, balançando a cabeça.

— Beleza. Vamos para o próximo. — Camila só concordou, sem insistir.

No dia seguinte, foram até a zona leste, uma antiga área industrial agora transformada em polo artístico.

Prédios de tijolos expostos exibiam murais multicoloridos e esculturas incomuns, enquanto fotógrafos jovens dividiam espaço com artistas vestidos de maneira extravagante.

O lugar vibrava com movimento, cores e música.

Mas, conforme caminhava entre aquelas paredes grafitadas, Rafaela sentia como se fosse uma visitante passageira em um território que não lhe pertencia. Era um excesso constante de cor, som e presença, e o que ela mais ansiava, no fundo, era silêncio.

— Também não. — Rafaela murmurou, sem erguer muito a voz.

Camila soltou o ar, mantendo o tom otimista:

— Relaxe, amiga. A gente vai achar. Duvido que uma cidade do tamanho de Belmira não guarde um cantinho que seja a sua cara.

Foram dias intensos de busca, passando por centros comerciais, galerias sofisticadas, espaços coletivos... nenhum deles encaixava com o que Rafaela imaginava.

Até que, numa tarde de sábado, enquanto seguiam sem muita expectativa, um pensamento repentino iluminou a expressão de Camila.

Com um sorriso travesso, girou o volante com agilidade e entrou numa rua estreita, levando-as em direção ao bairro antigo, na fronteira do centro da cidade.

Ali dentro, parecia que haviam atravessado uma fronteira invisível para um mundo completamente distinto. Do lado de fora, a cidade continuava a rugir com buzinas impacientes e passos apressados, mas, naquele bairro, o tempo parecia desacelerar. Cada minuto se alongava, como se o relógio batesse em um compasso mais calmo e silencioso.

As grandes árvores de jacarandá formavam sombras fragmentadas no chão de pedra, e as paredes antigas das casas estavam vestidas por trepadeiras verdejantes que se enroscavam como fios pacientemente tecidos ao longo dos anos.

Camila estacionou o carro numa esquina e, sem trocar muitas palavras, as duas seguiram a pé, deixando que o silêncio entre elas fosse preenchido apenas pelos sons sutis do lugar.

Caminharam por vielas estreitas onde o ar carregava o cheiro acolhedor de comida feita em casa, misturado ao leve murmúrio das vozes que escapavam pelas janelas. Era um cenário que transmitia intimidade, como se a rua guardasse segredos que se revelavam apenas a quem passava devagar.

Foi numa curva discreta que Camila freou os passos de repente. Virou-se para Rafaela com os olhos brilhando, quase em urgência.

— Rafa, olha aquilo.

Diante delas, erguia-se uma casa antiga, marcada pelo tempo, mas ainda impregnada de uma dignidade silenciosa.

A porta de madeira, pintada num vermelho profundo e fechado, sustentava um letreiro pendurado que anunciava: "Vende-se". As paredes brancas ostentavam algumas manchas de idade. O telhado escuro e os entalhes no portal, embora corroídos pelo tempo, preservavam a elegância de uma era esquecida.

No entanto, foi algo mais simples, quase invisível, que paralisou Rafaela. Um galho de árvore coberto por pequenas flores douradas se inclinava para além do muro, deixando cair seu perfume no ar como quem oferecia um convite sem palavras. Havia uma beleza discreta ali, mas suficientemente intensa para despertar nela uma sensação de reconhecimento instintivo.

Sem refletir, Rafaela se aproximou. Havia no seu caminhar uma urgência silenciosa, algo que vinha de dentro, como se estivesse sendo puxada por memórias enterradas.

Poucos minutos depois, o corretor se juntou às duas. Era um homem de meia-idade, óculos de armação fina e gestos contidos, que, com certo esforço, empurrou a pesada porta de madeira.

Do outro lado, a visão fez Rafaela prender o ar num instante de espanto.

O pátio não era extenso, mas a harmonia de cada elemento o tornava quase sagrado. No centro, um ipê em plena floração se erguia majestoso, espalhando seu aroma doce por todo o espaço. O chão, coberto por pedras antigas já gastas, servia de palco para a luz do sol que passava filtrada pelos galhos, formando desenhos delicados de sombra e brilho. Num canto, o musgo úmido se agarrava à parede, reluzindo sob a discreta claridade.

De frente para a entrada, a casa de dois andares surgia, toda de madeira. Os beirais curvados e as janelas com molduras entalhadas protegiam vidros antigos que filtravam a luminosidade, deixando o interior tingido de uma luz suave e acolhedora. Era como se o lugar tivesse conseguido se manter suspenso no tempo, intacto apesar da pressa do mundo lá fora.

Rafaela avançou lentamente até o centro do pátio. Tocou o tronco áspero do ipê e deixou que a textura da madeira conversasse com a palma de sua mão. Fechou os olhos, e, num segundo, a lembrança irrompeu.

A casa da avó. O quintal coberto por uma árvore idêntica, que a cada outono transformava o chão em um tapete de flores douradas. A avó, sentada sobre uma esteira de palha, abanando-se com um leque e ensinando, pacientemente, a trabalhar com as ferramentas de restauração de livros raros e papéis delicados.

O cheiro adocicado das flores se misturava ao aroma de compotas e licores que ela preparava com as próprias mãos, enquanto falava palavras que, agora, ecoavam nítidas dentro de Rafaela:

— Rafa, quem trabalha com arte precisa ter calma. Só com o coração quieto a mão pode ser firme.

Quando abriu os olhos, uma leve umidade lhe embaçava o olhar, mas sem lhe roubar a clareza.

Não havia mais incerteza. Diante dela estava mais do que um espaço de trabalho, era um abrigo capaz de lhe devolver as raízes, os fragmentos de afeto e a serenidade que tanto buscava.

Sem subir para ver os quartos, sem perguntar valores, sem qualquer vestígio de hesitação, ela se voltou para Camila e para o corretor. A voz saiu firme, direta, com a segurança de quem encontrou exatamente o que precisava:

— É aqui.
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