Felícia saiu com o rosto pálido, quase sem cor. Ela também parecia estar perdendo completamente a sanidade, alternando entre crises de choro e risos descontrolados.Enrico voltou para dentro de casa e começou a limpar com cuidado as urnas que continham minhas cinzas e as do nosso filho. Quase me esqueci de mencionar. Alguns dias atrás, ele foi ao crematório buscá-las. Estavam cobertas por uma espessa camada de poeira acumulada pelo tempo. Com um pano macio, foi removendo cada partícula de sujeira, como se estivesse cuidando de algo profundamente sagrado.Nos últimos dias, já não conseguia mais segurar nosso filho em meus braços etéreos. Ele finalmente estava livre das amarras terrenas e podia ir para onde quisesse. Mas eu ainda permanecia presa a Enrico e ao que havíamos deixado inacabado.Sabia que era hora de me despedir do meu pequeno.Naquela noite, depois de ele ter brincado o dia inteiro pelo quintal recém-cuidado, o envolvi com meus braços translúcidos. Lhe contei uma históri
Naquela noite, Enrico não foi embora. Dormiu no mesmo quarto onde eu e nosso filho costumávamos dormir. Eu não conseguia entender o que se passava na cabeça dele. Durante anos jamais se importou conosco, e agora encenava esse papel de homem arrependido? Para quem?Na manhã seguinte, ele dirigiu até a cidade e voltou com várias ferramentas de jardinagem. Mal chegou, arregaçou as mangas e começou a batalhar contra o mato alto que dominava o pátio.Era pleno julho, o auge do verão do país. O sol castigava sem dó, e não havia nem um sopro de vento para aliviar o calor sufocante. Mesmo assim, ele seguiu cortando o matagal e podando as rosas e hortênsias que haviam crescido selvagemente, como se fosse imune àqueles quase 40 graus.Quando a sede apertava, tomava um gole da água mineral. Quando a fome chegava, mordia um pedaço do pão duro que comprara na cidade. Dentro da casa, ele limpou cada canto com uma atenção meticulosa, removendo camadas de pó e sujeira acumuladas por três longos ano
Enrico desabou no sofá.Balançava a cabeça incessantemente, repetindo com voz embargada:— Não... Era impossível... Eu ainda nem tinha a perdoado... Como ela pôde morrer assim?Ri até as lágrimas escorrerem pelo meu rosto espectral.Então era por isso? Eu não podia partir daquele mundo porque ele, em sua arrogância, ainda não havia me concedido seu perdão?Com mãos trêmulas, ele pegou o celular do chão e abriu a galeria de fotos. Aquela única imagem... O único registro dele com nosso filho juntos. Enrico ficou olhando fixamente por um tempo que pareceu interminável, enquanto seus ombros começavam a tremer e lágrimas silenciosas caíam sobre a tela iluminada.De repente, ele se levantou num impulso e saiu de casa às pressas, quase correndo. As mãos ainda tremiam no volante enquanto dirigia. Pela segunda vez em poucos dias, estacionou em frente à casa onde eu e nosso filho morávamos. Em questão de dias, nos visitou mais vezes do que em todos os últimos anos juntos. Não sei se isso me cau
Enrico bloqueou o cartão adicional esperando que eu ligasse desesperada, implorando por ajuda. Mas, em vez disso, o que chegou primeiro foi o relatório do detetive particular que ele havia contratado.O detetive enviou uma série de arquivos por e-mail. Entre eles, algumas capturas de tela de um portal de notícias local com uma manchete alarmante: "Chocante! Mãe e filho são encontrados mortos em casa dias após o falecimento."A reportagem era curta e não mencionava o nome da vila, apenas o da cidadezinha próxima. Mas a foto anexada não deixava dúvidas. Era exatamente da casa onde eu morava. Enrico a reconheceu imediatamente.Ele ficou paralisado diante da tela, encarando aquelas palavras com descrença. Ele se recusava a acreditar no que via. Com as mãos trêmulas, pegou o celular e tentou me ligar, mas recebeu a mensagem de número inexistente. Tentou pelo WhatsApp, mas ninguém respondeu.De repente, como se uma ideia assustadora o atingisse, abriu o aplicativo do banco e acessou o ger
O silêncio tomava conta do ambiente, quebrado apenas pelo som alegre de João brincando com um pequeno espírito que havia acabado de conhecer. Eu observava Enrico atentamente, curiosa para ver sua reação ao ouvir, mais uma vez, a notícia da minha morte saindo da boca de outra pessoa.Mas, assim como aconteceu quando Maria lhe contou, ele apenas franziu as sobrancelhas por um instante antes de abrir um sorriso cínico.— Quem diria... O Sr. Lucas ainda se preocupa tanto com minha esposa. — Ele comentou com desprezo. — Nem eu mesmo sei se ela está viva ou morta, mas você já decretou o óbito dela. Como é isso? Ela te contou pessoalmente? Ou será que, durante todos esses anos, vocês andaram se encontrando escondido? Esse joguinho é tão emocionante assim? Tanto faz. Ela sempre foi imunda. Nem quis tocar ela. Se quiser se divertir com ela, fique à vontade.Algo dentro de mim se despedaçou completamente. Minha garganta apertou, e se eu ainda fosse humana, provavelmente estaria chorando. Mas eu
Enrico agarrou as chaves do carro e saiu em disparada. Eu e João não tivemos escolha, fomos puxados com ele.Na correria, Enrico acabou esbarrando com força em um homem no saguão. Era Lucas. Reconheci-o na hora. Com o impacto, Lucas deu dois passos para trás e, ao se recompor, arregalou os olhos, surpreso com quem tinha acabado de encontrar.— Ora, ora... Se não é o grande magnata da Cidade do Sul em pessoa. — Lucas comentou com um tom irônico. — O que faz aqui a essa hora da noite, Sr. Enrico? E correndo desse jeito, como se estivesse fugindo do diabo?Enrico mal se deu ao trabalho de responder adequadamente, apenas murmurou um pedido de desculpas seco enquanto seguia direto para o elevador. Mas Lucas não era do tipo que deixava uma oportunidade passar. Ele o seguiu com interesse visível, acompanhando-o até a ala de hematologia.Quando chegamos ao quarto de Felícia, ela não estava lá, o que fez Enrico correr até o consultório do médico responsável. Foi só ao descobrir que não era n