— Que isso, gente! — Camila se atirou na frente das palavras, o rosto desbotando feito fotografia velha enquanto cravava os olhos no celular de Julia como quem vê a própria sentença de morte. — A Srta. Julia está é zoando com todo mundo!
Julia inclinou a cabeça devagar, um sorriso se desenhando nos lábios que fazia o ar gelar.
— Srta. Camila, que desespero é esse? Faz pouco você não estava aí fazendo o maior escândalo, mandando a Helena se rastejar pedindo desculpa? — Ela deixou o silêncio pesar por uns segundos. — Então bora...
O coração de Camila disparou que nem tambor de escola de samba, saltando direto para a garganta, e toda aquela encenação de princesa ofendida desmoronou feito castelo de areia na maré.
— Não, imagina... Olha, fui eu que provoquei a Helena desde o começo. — As palavras saíram num atropelo só, todas grudadas umas nas outras. — Sou eu que tenho que pedir perdão aqui. Helena, me desculpa pelo que fiz, tá?
Ela virou para Leonardo com cara de cachorro molhado na porta de casa.
— Sr. Leonardo, reconheço que vacilei legal, a Helena não tem nada a ver com essa confusão.
Julia deixou escapar uma risadinha que cortava a pele e mirou Leonardo bem nos olhos.
— E então, Sr. Leonardo? Ainda vai bancar o cavaleiro andante dela? — Cada palavra era uma alfinetada certeira. — Prefere dar ouvidos para qualquer uma da rua do que confiar no pessoal da própria casa... Que decepção danada. Se isso cair na boca do povo, imagina o estrago na nossa imagem.
Ela jogou de volta cada argumento que ele tinha usado, tudo mastigadinho, como se fossem tapas na cara.
Leonardo engasgou com as próprias palavras, a cor sumindo do rosto enquanto sentia o chão se abrindo debaixo dos pés.
Pior ainda, com meio escritório assistindo aquele vexame, não dava para continuar defendendo quem não tinha defesa.
Chegou mais perto tentando contornar a situação, agarrou a mão dela num aperto meio aflito e estampou um sorriso torto na cara.
— Amor, me perdoa. Agi feito um animal sem usar a cabeça. Ainda bem que você me botou no meu lugar.
Julia manteve aquela cara de velório educado, fechou a boca num bico e tentou soltar a mão dele de mansinho.
Leonardo sentiu o gelo dela atravessar o peito feito facada, apertou ainda mais os dedos dela numa tentativa desesperada e partiu para cima da Camila com uma voz que rachava o ar:
— Srta. Camila, você já aprontou nessa empresa mais do que consigo lembrar. Da outra vez, a Julia teve dó de você, mas agora quero uma explicação que me convença. O circo que você armou aqui hoje vai parar na internet antes do sol se pôr, então pode ir preparando uma retratação completa.
Para qualquer artista que se preze, aquilo era praticamente um atestado de óbito profissional.
Camila se contorceu entre a humilhação e o pânico, mas ainda tinha miolos para entender que estava numa enrascada sem saída.
— Tá... tá bom, Sr. Leonardo... — Ela gaguejou com a voz toda quebrada.
Leonardo começou a passar a mão na palma da Julia fazendo aqueles desenhinhos que ela costumava adorar, a voz virando mel puro:
— Meu bem, não fica de mal comigo, vai? Fui um idiota dos grandes, da próxima vez escuto você primeiro antes de fazer qualquer besteira, tá?
Ficou mansinho feito um vira-lata esperando carinho depois de fazer arte.
Nos tempos de antes, quando rolava algum desentendimento entre eles, era só ele baixar a bola e fazer charme que Julia derretia toda, perdoando tudo com beijinho e chamego.
Só que agora o jogo tinha mudado, e muito.
Julia não deu nem sombra daquele sorriso dengoso de sempre, nem fez aquela dancinha de reconciliação que ele conhecia de cor e salteado.
Pelo contrário, tirou a mão dele com delicadeza de cirurgião e soltou um sorriso frio.
— Claro, Leonardo. Confio em você.
O tom era pura educação de gelo, sem um pingo de calor humano.
Leonardo sentiu o estômago dar um nó cego e saiu atrás dela feito doido.
— Julia!
Vendo Leonardo se humilhar daquele jeito para conseguir as migalhas, Camila sentiu o peito pegar fogo enquanto batia o pé feito pirralha malcriada.
"Espera só", pensou ela, com uma raiva que fervia no sangue. "Ainda vou fazer esse homem te mandar para o inferno e me implorar de joelhos para ficar comigo."
E ainda tinha aquela desgraça da foto...
Não sabia se era verdade ou só blefe, mas precisava descobrir e tirar aquela arma das mãos de Julia antes que virasse contra ela.
Tirou o celular e mandou uma mensagem para o contato certo.
...
Leonardo grudou na Julia feito chiclete, seguindo ela até a sala de descanso onde mandou Helena se mandar para ficarem sozinhos.
Julia tratou ele como se fosse um móvel velho, fez seu café com movimentos mecânicos e voltou para os papéis, ignorando a presença dele.
Leonardo sentiu o coração despencar no poço do estômago. Correu para copa, voltou com uma bandeja de frutas cortadas em quadradinhos perfeitos e começou uma dança patética, ora enfiando pedaços de fruta na boca dela, ora massageando os ombros tensos, cuidando dela com obsessão.
Julia acompanhou toda aquela performance com olhos vazios.
Se fosse a Julia de antes, já teria se derretido toda e feito as pazes com beijo e promessa de amor eterno. Mas a Julia de agora tinha o coração despedaçado, e não existia mais conserto possível.
— Para com isso. — Ela tirou as mãos dele com indiferença. — Já não estou mais brava, pode ir tocar seus negócios.
Leonardo sentiu um calafrio de pânico subir pela espinha e a abraçou por trás num desespero total, encostando o queixo no ombro dela naquele jeito íntimo que antes derretia ela toda.
— Meu amor, pelo que é mais sagrado, não me congela assim. — A voz saiu embargada.
Julia fechou os olhos por um segundo, juntando força pra continuar aquela farsa que estava consumindo ela por dentro. Virou o rosto e deu um beijinho seco no rosto dele, cumprindo tabela.
— Estou ótima, pode ir trabalhar tranquilo.
Leonardo ficou radiante feito cachorro que achou osso, fazendo carinho no rosto dela.
— Prometi que hoje era seu dia, então enquanto você trabalha fico aqui do seu lado.
Parecia que tinha fincado raiz ali, então Julia não gastou mais energia.
Mas trabalhar lado a lado com ele despertou uma enxurrada de lembranças dos primeiros tempos, quando construíam a empresa literalmente do nada, dormindo no escritório e comendo miojo no café da manhã.
Naquela época, não tinham nem vintém no bolso, Leonardo não queria nem ouvir falar de pedir ajuda para os pais ricos, e nos momentos mais apertados dividiam um miojo de dois reais como se fosse banquete de rei.
Ela ainda lembrava igualzinho de como os olhos dele ficaram molhados quando viu ela separando aquela porção miserável em dois pratos.
— Juro pela minha alma que você nunca mais vai passar aperto por minha causa, Julia.
Julia piscou depressa para segurar as lágrimas que ameaçavam vir e continuou trabalhando de cabeça baixa.
O tempo foi se arrastando devagar até que o telefone começou a tocar insistente, quebrando aquele silêncio pesado que tinha se instalado entre eles.
Leonardo deu uma olhada na tela, fez uma careta e cortou a ligação.
Julia levantou os olhos, curiosa.
— É a turma do Enrico enchendo a paciência, querendo que eu apareça na festa de aniversário dele. — Ele explicou com um suspiro cansado. — Besteira total, hoje prometi ficar colado em você.
Mal acabou de falar e o aparelho voltou a berrar, mostrando que aquela turma não ia desistir fácil.
— É melhor atender. — Julia acenou com a cabeça.
Leonardo cedeu e apertou o verde.
— Leonardo, cara, hoje é aniversário do Enrico! — A voz animada explodiu do aparelho. — Cadê você, mano? Tem cada coisa boa aqui que você nem imagina!
— Isso mesmo, vem correndo que a festa está só começando! — Gritou outro ao fundo.
Leonardo cortou eles com impaciência:
— Já falei que estou casado. Parem de me chamar para essas palhaçadas. Já é tarde e estou acompanhando minha mulher. Tchau!
— Pera, pera! — A voz conseguiu impedir que ele desligasse. — Hoje é aniversário do Enrico, você não aparecer é sacanagem!
— Então traz a Julia junto, vai ser massa para ela também, ela precisa sair mais!
Leonardo continuou balançando a cabeça.
— Não rola, pessoal. Uma festa vale mais que o bem-estar da minha esposa? Nem a pau.
Julia largou os papéis e falou suave:
— Vai lá. Depois pego um Uber e volto para casa numa boa.
Leonardo desligou e segurou as duas mãos dela.
— Se você não vai, eu também não vou. Prometi que hoje era seu dia.
— Julia, pelo amor de Deus, vem com o Leonardo! — A voz conseguiu vazar mesmo com o telefone desligado. — Ficar em casa é um saco, você precisa se divertir!
— É isso mesmo!
A pressão estava forte, e Julia ficou uns segundos pensando antes de suspirar em rendição:
— Tá bom, vamos então.
...
O Nightclub Euphoria era desses lugares caros onde playboy ia torrar dinheiro, e tinham reservado um andar inteirinho para comemorar em grande estilo.
Quando Leonardo entrou com Julia no braço, o ambiente estava um inferno, com som eletrônico estourando os tímpanos, luzes piscando feito epilepsia, e ainda tinham contratado um bando de meninas para "animar" a festa.
Era putaria no seu estado mais puro.
Julia torceu o nariz com nojo mal disfarçado.
Leonardo captou o desconforto dela na lata, puxou ela para mais perto e acendeu todas as luzes, varrendo o pessoal com um olhar que cortava.
— Todo mundo fora. Agora.
Enrico e a galera sacaram que Leonardo estava pistola. Eles sabiam que Julia odiava esse tipo de ambiente.
— Pessoal, todo mundo para fora! — Enrico gesticulou freneticamente.
As garotas saíram meio sem graça, sussurrando sobre o clima tenso.
Só depois que o ambiente ficou limpo Leonardo procurou um cantinho para Julia sentar.
Conhecendo a mania de limpeza dela, pegou uns lencinhos e passou no sofá inteiro antes de fazer sinal para ela se acomodar.
— E nada de cigarro aqui. — Leonardo anunciou para os amigos. — Minha esposa tem alergia.
Ele arrancou o cigarro da mão de um cara e jogou no cinzeiro, apagando com força.
— Porra, Leonardo, você é o maior "escravo de esposa" de Santa Clara! — Um gritou rindo. — Que mimos são esses, cara, estou ficando com inveja!
— Verdade, semana passada soube que você queimou uns milhões numa joalheria. — Outro emendou na zueira.
Leonardo fez um prato bonito com as melhores frutas e ignorou as provocações, focando toda atenção na Julia.
— Ela é minha mulher, meu amor, minha vida — Ele respondeu sem tirar os olhos dela. — Como não vou tratar ela feito rainha?
Julia viu toda aquela demonstração pública sem esboçar reação nenhuma. Sentia só uma tristeza pesada se espalhando no peito feito mancha de óleo.
Quem ia imaginar que aquele mesmo homem que a mimava em público como se ela fosse de cristal estava esfregando a cara dela na lama por trás?
A ironia era tão cruel que dava vontade de vomitar.
Quando o relógio chegou perto das nove, Julia inventou uma desculpa de cansaço e disse que ia embora cedo, deixando eles curtirem à vontade.
Leonardo se levantou, mas Enrico e a turma partiram para cima.
— Relaxa, mano, deixa o motorista levar a Julia. — Insistiu Enrico. — Fica mais um pouquinho, nem meia-noite bateu ainda!
Leonardo hesitou uns segundos, claramente dividido entre dever e diversão.
Julia percebeu a hesitação e resolveu facilitar, segurando o braço dele de leve.
— Não esquenta, pego um táxi que é mais rápido. — Ela sorriu sem alegria. — Fica mais um tempo com seus amigos.
Com todo mundo fazendo pressão e Julia empurrando ele para ficar, Leonardo cedeu meio culpado.
— Deixa eu te acompanhar até a rua para ver se você pega um táxi decente.
Julia acenou que sim, e desceram juntos.
Leonardo parou o primeiro táxi que apareceu, conferiu se o carro estava em ordem, pagou adiantado e ainda deu uma aula de trânsito para motorista, como marido exemplar em ação.
O taxista, impressionado, não resistiu:
— Moça, seu marido é peça rara, viu? Hoje em dia é difícil achar homem que cuida direito da mulher.
Julia apertou os lábios num silêncio que gritava, sentindo como se tivesse engolido pedra que travou na garganta.
Foi quando botou a mão no bolso e percebeu que os óculos tinham ficado lá dentro.
— Desculpa, esqueci uma coisa importante. — Ela pediu desculpas e desceu. — Só um minutinho.
Eram aqueles óculos especiais que Leonardo tinha mandado fazer sob medida anos atrás, quando descobriu que ela tinha sensibilidade à luz. Usava há tanto tempo que viraram parte dela.
Mal deu uns passos na direção da entrada e viu Leonardo parado bem na porta, olhando para os lados como quem procurava alguém.
Julia começou a se aproximar, o nome dele já na ponta da língua, quando uma figura feminina apareceu correndo pela calçada feito passarinho e se jogou nos braços dele.
— Leo, meu amor, estava morrendo de saudades!