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Capítulo 4

Author: Feijões Barulhentos
Rafaela puxou a porta entalhada da mansão com força e saiu com firmeza.

Um trovão ecoou pelo céu, e, em seguida, a chuva despencou pesada, transformando a rua em uma cortina cinzenta que borrava o horizonte.

As gotas grossas batiam em sua pele como agulhas frias, encharcando o vestido e colando os fios de cabelo ao rosto.

O arrepio lhe percorreu a espinha, mas, com o frio, veio uma estranha sensação de clareza, como se cada gota lavasse um pedaço da névoa que a sufocava havia anos.

Ela não correu, não procurou abrigo, tampouco olhou para trás. Apenas puxou a mala com firmeza e seguiu em frente, passo após passo, atravessando a tempestade que parecia disposta a levar embora a poeira e a humilhação acumuladas em cinco anos de casamento.

— Rafaela! Você ficou maluca? — Gritou Henrique, a voz rasgada pela tempestade. Ele já estava quase entrando no carro quando a viu se afastar, voltou correndo até a entrada da mansão e, parado sob o beiral, bradou contra ela através da cortina de chuva.

Mas a chuva engolia suas palavras, transformando-as em sons distorcidos que mal chegavam aos ouvidos dela.

Ele encarou a silhueta frágil que se perdia na cortina de água. Sentiu a raiva crescer, convicto de que era apenas mais uma encenação, um teatro barato.

Rafaela, no entanto, ouviu e decidiu ignorar. Continuou firme, sem mover a cabeça.

Naquele momento, um ronco de motor rasgou o barulho da tempestade. Os faróis vermelhos de um carro de luxo surgiram em meio à cortina de água. O carro estacionou ao lado dela com precisão. O vidro baixou, revelando um rosto bonito, vibrante e decidido.

— Entra logo! — Gritou Camila Amaral, a voz carregada de urgência, mas também de carinho.

Ao reconhecer a melhor amiga, Rafaela sentiu o peito aliviar por um instante. Colocou a mala no porta-malas, abriu a porta e entrou no carro.

Quando a porta se fechou, o barulho da chuva ficou do lado de fora.

Camila não ligou o motor de imediato. Desprendeu o cinto, abriu a porta e caminhou de salto alto até o beiral da mansão, onde Henrique a observava, tenso. Com o dedo em riste, ela encarou o irmão e disparou:

— Henrique! Você só pode estar doente! Sabe que dia é hoje? Tem ideia de tudo o que a Rafaela já fez por você?

— Camila, isso é entre mim e ela. Não se mete. — A voz dele saiu irritada, mas os olhos permaneciam fixos no carro vermelho, como se pudesse destruí-lo apenas com a fúria do olhar.

Camila soltou uma risada nervosa, a voz subindo de tom:

— Não me meter? Se eu não tivesse me metido tantas vezes, a Rafaela já tinha sido destruída por você, seu canalha!

Ela afastou os cabelos molhados do rosto e, com mais firmeza, gritou:

— Você acha que ninguém sabe das suas escapadinhas? Ano passado, quando foi flagrado com aquela modelo em Paris, quem você acha que correu para apagar a notícia? Foi a Rafaela! Dois anos atrás, quando quase foi parar na delegacia por causa de uma briga bêbado num clube, quem pagou a conta e pediu desculpa em seu lugar? Também foi a Rafaela!

Os olhos dela ardiam de fúria enquanto seguia falando:

— E essa sua adorada Clara... você realmente acredita que ela é tão inocente? Rafaela sempre soube dos joguinhos dela, mas ficou calada esse tempo todo. Calada por você e pela imagem da família Amaral!

Cada frase era um golpe. Henrique ficou atordoado, com o peito apertado. Ele conhecia aquelas histórias, mas sempre acreditava que era sua mãe quem resolvia tudo. Jamais imaginava que a esposa, tão silenciosa, tivesse arcado sozinha com o peso de limpar seus erros.

Ele encarou o rosto de Camila, marcado pela fúria e pela chuva que escorria como lágrimas. Pela primeira vez, a certeza que carregava sobre Rafaela começou a vacilar. Cinco anos de convicções firmes se partiram dentro dele como vidro trincado.

Camila percebeu a hesitação dele e perdeu a paciência de vez.

— Escuta bem, Henrique. Se você deixar a Rafaela ir embora hoje, nunca mais vai encontrar alguém melhor do que ela. Pode se agarrar às suas amantes e às suas mentiras, mas espero de coração que morra sozinho, sem ninguém para carregar seu nome adiante!

Ela cuspiu as palavras como veneno, lançou um último olhar de desprezo para ele e voltou correndo para o carro.

O carro rugiu alto quando arrancou. Em segundos, desapareceu na chuva, levantando uma onda de água que caiu sobre Henrique, encharcando-o por inteiro. Ele permaneceu parado, atônito, imóvel na entrada da mansão.

No carro, o ar quente se espalhava. Camila dirigia com firmeza, mas de tempos em tempos olhava para a amiga de soslaio. Pegou uma toalha no porta-luvas e jogou no colo dela.

— Se enxuga, Rafa. Ficar molhada desse jeito não vai ajudar em nada. — O tom era ríspido, mas os olhos denunciavam preocupação.

Rafaela pegou a toalha, secou o rosto e os cabelos, sem pronunciar palavra.

O trajeto foi silencioso até o carro estacionar em frente ao prédio de Camila, um apartamento moderno e luxuoso no centro da cidade.

Lá dentro, o contraste era imediato. O tapete macio abafava os passos, o aroma leve de essência preenchia o ar, e o sofá aconchegante oferecia a sensação de refúgio.

Camila a fez se sentar e desapareceu por alguns minutos. Voltou com uma toalha maior e roupas limpas.

— Vai tomar um banho quente. Preparo um chá de gengibre com açúcar mascavo.

Rafaela segurou a muda de roupa. Os olhos marejaram ao ver a amiga correndo de um lado para o outro, cuidando dela com a dedicação de quem protegia o que era mais valioso.

O banho foi um alívio. A água morna escorreu pela pele, levando embora o frio, a sujeira e parte do peso que carregava no coração. O vapor tomou conta do banheiro, borrando o espelho. Rafaela se sentiu desmanchar por dentro. Achava que já tinha endurecido, que nada mais poderia quebrá-la. Mas ainda doía, ainda machucava.

Quando saiu do banho, vestindo roupas limpas e confortáveis, encontrou uma xícara fumegante de chá sobre a mesa. Camila se sentou ao lado dela no sofá e, sem dizer nada, puxou-a para um abraço apertado.

— Chora, amiga. Chora até esvaziar. Depois disso, ninguém mais vai ter o direito de te ferir. Estou aqui, e não vou deixar que encostem em você de novo.

A voz firme e carinhosa quebrou a última barreira. Todo o muro que Rafaela ergueu nos últimos cinco anos desmoronou de uma vez.

Ela se jogou nos braços da amiga e chorou como nunca.

Do lado de fora, a tempestade ainda castigava a cidade. Mas dentro dela, pela primeira vez em muito tempo, começava a nascer a promessa de um novo amanhecer.
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