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Capítulo 2

Author: Óscar Lio
Do outro lado da linha, houve uma breve pausa. Em seguida, a voz grave de Flávio Amorim soou:

— Daqui a quinze dias, a família Amorim vai se mudar. Eu passo para te buscar.

Virgínia ficou imóvel por um instante, mas logo soltou uma risada baixa. Ela não havia dito nada ainda, mas ele já tinha certeza de que ela iria.

E, para seu azar ou sorte, ele estava certo.

— Certo.

Com os recursos de Flávio, em quinze dias, mesmo que Marcus resolvesse revirar o mundo, ele nunca a encontraria.

Naquela noite, até tarde, Virgínia não respondeu a nenhuma das mensagens de Marcus.

Marcus estava realmente preocupado. Ele saiu mais cedo do trabalho, trocou seu voo para um mais próximo e, ao abrir a porta de casa, ele parou imediatamente, os pés cravados no chão. A ansiedade que ardia em seu olhar esvaneceu-se quase por completo.

Sob a luz quente e amarelada da sala de estar, Virgínia estava sentada no sofá, assistindo televisão.

— Virgínia? Você voltou? — Marcus deu alguns passos rápidos em direção a ela. — Eu te mandei tantas mensagens...

Sem terminar a frase, ele a puxou para seus braços, apertando-a contra si. Sua mandíbula encostou no topo da cabeça dela, enquanto ele roçava de leve o queixo em seus cabelos.

— Que bom que você está bem. Eu estava tão preocupado... Virgínia, eu não posso viver sem você. — Continuou Marcus.

O olhar de Marcus transbordava afeto.

Virgínia sabia que ele a amava de verdade. Mas ela também sabia que o amor dele não era exclusivamente dela.

Um nó se formou em sua garganta, e Virgínia precisou apertar a palma da mão para sufocar a vontade de chorar. Por um instante, ela quase contou tudo. Quase jogou a verdade na cara dele.

Mas, no segundo seguinte, ela reprimiu esse impulso. Se ela falasse, nunca conseguiria ir embora.

Ela se desvencilhou do abraço e respondeu com a voz o mais controlada possível:

— Minha corrida foi adiada. Eu fiquei sem bateria no celular e não vi suas mensagens.

Marcus não notou a turbulência escondida sob aquele tom calmo. Ele sorriu e, com um gesto leve, passou o dedo pelo nariz dela:

— Não viu, tudo bem. Mas por que você está com os olhos marejados? Não vou brigar com você.

— Está com fome? — Marcus balançou a chave do carro, o sorriso descontraído no rosto. Vestindo camisa social e calça de alfaiataria, ele exalava elegância. O paletó estava pendurado no braço, e sua postura impecável destacava ainda mais sua presença. — Eu reservei aquela sua tão falada brasserie francesa. Vamos, minha princesa, hoje você pode comer até não aguentar mais.

Ele estendeu a mão para ela, a palma virada para cima.

O olhar de Virgínia pousou naquela mão e, por um instante, sua mente a levou de volta ao passado.

Quando ela tinha 18 anos, em uma tarde ensolarada, e no meio da quadra de basquete, aquele mesmo Marcus estendeu a mão para ela. Ele usava uma camiseta branca encharcada de suor, uma bola de basquete presa debaixo do braço, e um sorriso ainda mais despreocupado do que agora.

— Vamos, minha princesa. Hoje eu te pago um lanche até você explodir!

Naquela época, o coração de Marcus pertencia apenas a ela.

Virgínia não quis punir o próprio estômago, então seguiu com ele até o restaurante francês.

Ele continuava o mesmo. Apesar de ser um homem que não costumava servir ninguém, Marcus enrolou as mangas da camisa e, sem cerimônia, começou a cuidar dela. Limpava delicadamente o canto de sua boca, colocava a primeira porção de comida no prato dela e garantia que tudo estivesse perfeito.

Quando Virgínia percebeu, seu prato já estava tão cheio da comida que parecia uma pequena montanha.

Foi então que o celular de Marcus começou a tocar. O som insistente do toque a trouxe de volta à realidade. Se não fosse por aquele toque, ela provavelmente teria se deixado levar mais uma vez pela ilusão do amor perfeito que ele parecia oferecer.

— Pode atender.

Ela abaixou os olhos, mexendo distraidamente no molho de seu prato.

Marcus olhou para o celular, murmurou algo para acalmá-la e saiu para atender a ligação. Quando ele voltou, seus olhos estavam cheios de preocupação e culpa:

— Virgínia, surgiu uma cirurgia de emergência no hospital. Eu preciso ir agora. Me desculpe por não poder terminar o jantar com você, mas prometo que amanhã vou tirar o dia de folga só para a gente.

Virgínia já havia visto o nome de quem estava ligando. Mas ela não expôs a mentira dele. Apenas assentiu com a cabeça e respondeu:

— Tudo bem. Pode ir.

Com a permissão dela, Marcus não perdeu tempo. Ele se levantou, pegou suas coisas e deixou o restaurante.

Olhando para o assento vazio à sua frente, Virgínia sentiu uma pontada no peito, como se agulhas estivessem perfurando seu coração. Uma sensação de dormência tomou conta dela. Ela tentou se recompor, ajeitou os talheres e estava prestes a continuar com a refeição quando uma chamada de vídeo de Aurora apareceu na tela de seu celular.

Virgínia recusou a ligação. Aurora insistiu, e ligou novamente, repetindo o mesmo gesto dezenas de vezes, até que Virgínia finalmente atendeu.

Aurora apareceu com seu habitual sorriso inocente:

— Virgínia, você não está comendo comida francesa, está? Eu sabia! Hoje, quando ele voltou para casa, estava com aquele cheiro forte de foie gras.

Aurora colocou uma ênfase pesada na palavra “casa”, e Virgínia não teve dificuldade em captar o tom provocativo em sua voz.

Virgínia fechou a expressão e respondeu com frieza:

— Aurora, você é tão infantil. Por acaso esqueceu quem aqui é a esposa legítima? Quer apostar quanto que, se eu enviar essas mensagens para o Marcus agora, ele vai decidir entre você e eu?

Aurora hesitou por um breve instante, mas logo voltou a sorrir:

— Então manda, Virgínia. Não desligue. Quero ver quem é a infantil aqui.

Virgínia não sabia explicar por que e não desligou. Alguns minutos depois, o fundo do vídeo começou a se mover, e a figura de Marcus apareceu na tela.

Aurora se virou rapidamente e encostou-se no peito dele, de forma que ele não pudesse ver o que estava na tela do celular.

— Marcus, você ainda está bravo comigo por eu ter fugido com outra pessoa naquela época? Se eu não tivesse ido embora, você não teria procurado a Virgínia, não é? Você teria se casado comigo, certo?

Marcus franziu a testa, visivelmente irritado:

— Aurora, não existe “se”.

— Eu só queria saber… — Aurora deixou os olhos ficarem vermelhos e diminuiu ainda mais a voz. — Não quis dizer nada com isso…

Depois de alguns segundos de silêncio, Virgínia viu Marcus abrir a boca. Sua voz saiu rouca:

— Sim.

Aquele “sim” foi como uma faca atravessando o coração de Virgínia. Em um instante, todo o vazio tomou conta dela. Então era isso. Desde o início, ela nunca foi a única no coração dele.

De repente, Virgínia se lembrou do dia do casamento deles. Marcus segurou sua mão diante de todos os convidados e fez um juramento:

— Eu, Marcus, prometo que, nesta vida, seja no passado ou no futuro, amarei apenas Virgínia. Minha vida, meu dinheiro e minha alma pertencem somente a ela. Virgínia pode ser teimosa, cometer erros, até mesmo não me amar ou amar outro homem, mas, enquanto ela não me deixar, eu nunca a abandonarei.

Naquele momento, Virgínia chorou de emoção, acreditando que tinha conquistado o amor mais verdadeiro do mundo. Agora, ela finalmente entendia que aquele juramento era uma mentira desde o início.

Virgínia nunca foi a única de Marcus. Não foi antes, não era agora, e nunca seria.

Ela era apenas uma ferramenta que ele usou para provocar Aurora. Com o tempo, ele desenvolveu algum carinho por ela, mas nunca o suficiente para que ele se desfizesse dela.

Pensar nisso fez Virgínia esboçar um sorriso amargo. Ela riu para si mesma, mas, enquanto ria, as lágrimas começaram a cair sem parar.

Ela acreditava que, pelo menos por um momento, ela havia experimentado um amor verdadeiro e ardente. Mas, no final, ela percebeu que sempre havia sido apenas uma ladra, ocupando o lugar que pertencia a outra pessoa.

Ela abaixou a cabeça, apertando com força o tecido da blusa sobre o peito, tentando recuperar o fôlego. Mas o nó em sua garganta não cedia, e as lágrimas continuaram caindo, uma após a outra, molhando a mesa.

Naquela noite, Marcus não voltou para casa.

Virgínia, no entanto, recebeu uma foto dele dormindo. Foi Aurora quem enviou.

Virgínia ficou olhando para o rosto dele na imagem por um longo tempo. Até que o sol nasceu, e seu coração, antes em pedaços, ficou completamente vazio. No silêncio, ela finalmente alcançou uma estranha e fria serenidade.

Ela pegou o celular e ligou para sua amiga advogada, Susana. Quando a ligação foi atendida, sua voz soou firme, mas carregada de uma dor profunda:

— Susana, por favor prepare um acordo de divórcio para mim.
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