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Capítulo 3

Author: Na Medida Certa
Virei as costas sem nem me dar ao trabalho de responder.

Meu pai, furioso, pegou um vaso e jogou aos meus pés.

— Filha ingrata! Tá fugindo de casa, é? — Berrou. — Perfeito! Já que você tem esse monte de dívidas, trate de me pagar até a próxima semana. Caso contrário, mando o jurídico te enfiar na cadeia pra aprender!

Os cacos do vaso rasgaram minha perna, o sangue escorria... mas, sinceramente, eu nem senti.

Ouvir isso dele? Nenhuma novidade. Nenhuma surpresa.

Virei e encarei eles.

Eles acharam que eu ia me assustar, que ia abaixar a cabeça, implorar, pedir perdão.

Só que, olhando pra essas duas figuras... meu coração, que antes ainda se machucava, agora parecia morto. Nem uma onda, nem uma dor. Nada.

Virei de volta e, antes de bater a porta, só deixei duas palavras:

— Tá bom.

Se é pra pagar... então vamos pagar.

Depois disso, não existe mais nenhuma ligação entre mim e essa família podre.

Enquanto eu saía, ainda podia ouvir meu pai berrando lá de dentro, completamente fora de si.

Fingi que era surda.

Mancando, atravessei o condomínio e, só então, me dei conta de como o mundo lá fora parecia enorme.

Tão grande... que eu, que passei a vida inteira presa naquela casa, nem sabia pra onde ir.

Levantei a cabeça. No céu, só uma estrela brilhando sozinha...

De repente, percebi que eu era igualzinha a ela.

Me encolhi na calçada, abracei os joelhos e tentei, em vão, aquecer um pouco esse corpo que parecia tão vazio... tão frio.

Na verdade, eles não eram assim no começo.

Meus pais eram conhecidos como o casal perfeito, amoroso, inseparável.

E eu, filha única, sempre fui tratada como uma princesa — o maior tesouro da vida deles.

Até o dia em que Yasmin entrou na nossa casa.

Filha dos melhores amigos dos meus pais.

Depois que os pais dela morreram num acidente, nenhum parente quis ficar com ela. Então... meus pais a trouxeram pra cá.

No começo, eu fiquei feliz. De verdade.

Sempre fui filha única... achava que ter uma irmã seria incrível.

Ainda mais porque... a gente fazia aniversário no mesmo dia.

Eu dei pra ela meus brinquedos favoritos, meus vestidos mais bonitos... tudo de coração.

O que eu não sabia... é que aquela menininha, que me chamava de “mana” com tanto carinho, era uma víbora disfarçada.

A gente ainda estava no ensino fundamental naquela época.

Meus pais, sempre ocupados, me deram o dinheiro da semana e pediram que eu cuidasse da Yasmin, que levasse ela pra comer, que fosse uma boa irmã.

Yasmin me disse que ia sair pra comer com umas amigas. Achei normal, confiei, e dividi o dinheiro — dois terços pra ela, um terço pra mim.

Quando meus pais voltaram... ela tinha desmaiado de fome.

Correram com ela pro hospital. O diagnóstico: hipoglicemia e começo de gastrite.

Na mesma noite, acharam no meu quarto uma bolsa de grife, caríssima.

— Foi assim que você cuidou da sua irmã? — Meu pai gritou. — Júlia! Você tem quantos anos pra estar gastando com coisa de luxo?

Eu entrei em pânico. Juro que não sabia de onde aquela bolsa tinha aparecido.

Naquela época... meus pais ainda queriam acreditar em mim.

Disseram que iam esperar a Yasmin acordar, pra esclarecer tudo.

Mas, quando ela abriu os olhos... a primeira coisa que disse, com voz trêmula e olhos marejados, foi:

— Tio... tia... não briguem com a mana... Foi culpa minha... Eu... eu que não gosto muito de comer...

Pronto. Bastou isso.

Minha sentença estava dada.

Minha mãe segurou ela no colo, chorando:

— A partir de hoje... você é nossa filha.

E eu... eu passei a ser a egoísta, a fútil, a menina vazia que só pensa em gastar.

O brilho dos olhos deles, que antes era todo meu... nunca mais voltou.

Oito anos.

Trezentas dívidas.

Foi isso que eles me deram.

Peguei mais uma vez aquele maço de papéis do bolso e fiquei olhando.

Cinquenta mil reais.

Eu sou só uma garota recém-saída do ensino médio... Como, em nome de Deus, eu ia conseguir juntar isso tudo... em uma semana?
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