Ayla não teve tempo de reagir e o suco atingiu em cheio o seu rosto.
Ao ver a cena, as empregadas correram para ajudar a limpá-la.
— Thiago! — A voz de Gustavo ecoou, furiosa.
Assustado, o menino subiu as escadas em disparada. Gustavo deu um passo para ir atrás dele, mas Bianca se levantou rapidamente e o impediu.
— Gus, ele é só uma criança. Não use violência. Deixe que eu vá ver como ele está. — Disse ela, lançando de relance um olhar para Ayla, que ainda tentava limpar o rosto, mas preferiu se calar.
Só então Gustavo voltou a atenção para a esposa.
— Você está bem? Me deixe ver.
Ayla já havia se enxugado, mas a mão dele se aproximou novamente, tentando tocar o seu rosto.
— Está sujo. Não me toque! — Soltou sem pensar.
Gustavo pareceu não entender.
— Como eu poderia ter nojo de você? Eu só me preocupo.
Ele suspirou, tentando amenizar o clima.
— Se eu soubesse que o Thiago seria tão difícil, nunca teria deixado você cuidar dele sozinha.
Ayla arqueou os lábios em um sorriso irônico.
— Pois é. Se a mãe dele estivesse por perto, certamente faria melhor do que eu. Pena que ela morreu. A pobre madrasta aqui não sabe mesmo criar uma criança, não é?
Gustavo ficou imóvel por um instante, o rosto travado.
— Do que está falando? O Thiago é adotado. Ele só tem você como mãe. — Disse, tentando sorrir, e passou a mão nos cabelos dela com um gesto afetuoso.
Ayla não esperava o toque e sentiu um enjoo súbito, o corpo inteiro se enrijeceu.
Assim que voltou ao quarto, foi direto para o chuveiro.
Pouco depois, Gustavo apareceu à porta. Seu verdadeiro propósito era retomar o assunto que o consumia desde o jantar: convencer Ayla a aceitar que Bianca ficasse hospedada ali.
Mas "conversar", ela sabia, era só um disfarce.
Bianca era a esposa de verdade dele.
Ela, apenas a impostora que servia para manter a fachada.
— Agora a empresa está numa fase decisiva para abrir o capital, e o Thiago precisa de atenção. Você também é indispensável na empresa. A professora Bianca é especialista em educação infantil, você mesma viu como o Thiago a escuta...
— Está bem, então fica decidido assim. — Cortou Ayla, sem paciência. Quanto mais o ouvia, mais sentia o estômago revirar.
— Lalá, eu sabia que você entenderia. Você é sensata, sabe reconhecer o quanto eu te amo. — Disse Gustavo, aliviado.
O olhar dele se suavizou, e em poucos segundos ele se levantou para envolver a cintura dela com os braços.
Ayla girou o corpo rapidamente e levantou o celular diante dele. Na tela, havia a foto de uma mansão com vista para o rio, situada na região financeira de San Elívar, um dos bairros mais valorizados da cidade, ainda mais caro que o atual endereço dos Siqueira.
— Gustavo, o que acha desta casa? — Perguntou, com um sorriso tranquilo.
— A casa é ótima. Esse terreno vale ouro. — Respondeu ele, sem entender aonde ela queria chegar.
— Meu aniversário é no mês que vem. Eu gostei muito dessa casa. Por que não me dá de presente? — Disse Ayla, com a voz doce e o sorriso sereno.
Gustavo piscou, surpreso.
Durante dois anos, ela perdera tudo — tempo, carreira, dignidade.
Ayla deixara de lado um mestrado no exterior e uma proposta de uma grande empresa para ajudar Gustavo a salvar o pequeno negócio da família.
Em dois anos, a empresa se reergueu. Dentro de poucos meses, o lançamento na bolsa multiplicaria a fortuna dele em bilhões.
E ela? Continuava com as mãos vazias, prestes a ser descartada.
Ayla não pretendia deixar que eles vencessem. Nem perdoar.
Gustavo sempre prometia, com o tom terno que a encantava: "Tudo o que você quiser, dentro do que eu puder, será seu."
Mas Ayla nunca pedira nada... até agora.
Gustavo hesitou por um instante.
— Por que essa vontade repentina de comprar uma casa? A que temos não é boa o suficiente?
— Nossa casa é boa, mas não tem potencial de valorização. Já esta aqui é diferente, tem um ótimo retorno futuro. Além disso, com a empresa prestes a abrir o capital, seria perfeito receber convidados ali, dar jantares, mostrar o sucesso do negócio. Seria prático... e você ficaria ainda mais respeitado.
Cada palavra de Ayla parecia dita para o bem dele, o que logo dissipou a dúvida que começava a nascer em Gustavo. Ela ainda pensava primeiro nele, sempre. Nunca realmente gastava o dinheiro dele à toa, só queria o ajudar a crescer.
Por um instante, Gustavo sentiu um peso no peito, um toque de culpa, até mesmo ternura.
— Eu já tenho orgulho só de ter você. Não preciso de mais nada. — Disse, tentando se aproximar novamente.
Ayla deu um passo para trás.
— Eu disse que era um presente de aniversário. Finja que comprou pra mim. Você não vai ficar com pena, vai? — Falou com um sorriso leve, em tom de brincadeira.
Havia algo diferente nela naquela noite, algo que o deixava inquieto, quase fascinado.
Sem pensar muito, ele perguntou:
— E quanto custa essa casa?
— Não é muito. Só setenta milhões. — Respondeu Ayla, sorrindo, os olhos semicerrados.
O rosto de Gustavo endureceu por um segundo.
Não era mesquinho com ela, mas aquele valor era alto demais. Ainda assim, lembrando que o lançamento da empresa estava próximo e que contrariá-la traria mais dor de cabeça do que alívio, acabou assentindo.
— Está bem. Se você gosta, eu compro. — Disse por fim.
Pegou o celular ali mesmo e ligou para o financeiro diante dela.
Naquela noite, a conta pessoal de Ayla recebeu uma transferência de setenta milhões de reais.
Seguindo o pedido dela, Gustavo até escreveu na descrição: "Compra da casa para Lalá. Feliz aniversário."
O saldo do cartão, que antes marcava cento e cinquenta mil, agora mostrava setenta milhões e cento e cinquenta mil.
Desde que "se casou" com Gustavo, Ayla havia entregue a ele todo o controle financeiro da casa.
O dinheiro que tinha na conta era o que juntara com trabalhos de meio período durante os tempos de faculdade.
Em dois anos, não recebeu um único centavo de salário.
Na manhã seguinte, assim que saiu do quarto, Ayla viu, do alto da escada, a cena na sala de jantar: Gustavo, de avental, conversava e ria com Bianca. Thiago, grudado neles como uma sombra, seguia cada passo, comportado de um jeito que Ayla jamais viu.
Aquela imagem de harmonia de uma família perfeita se desfez no instante em que ela desceu os últimos degraus.
A mão de Bianca, antes apoiada no ombro de Gustavo, deslizou discretamente para o lado. O homem, por sua vez, caminhou até Ayla com um sorriso.
— Acordou? Eu mesmo preparei o café da manhã hoje. Vem experimentar.
Ayla lançou um olhar à mesa. O café estava farto, variado, montado com capricho.
Na casa havia empregada, e Gustavo nunca fora de comer pela manhã, muito menos de se arriscar na cozinha.
Além disso, o costume sempre fora um café simples, no estilo brasileiro. Aquele banquete... deixava claro para quem ele fora preparado.
Sem expor nada, Ayla apenas sorriu e comentou, olhando para Bianca:
— Tudo o que você gosta, não é?
— Sim! O Gus foi tão atencioso, disse que tinha medo de eu não me acostumar com outras comidas. Homens tão cuidadosos assim são raros. Lalá, você é mesmo uma mulher de sorte por ter um marido tão bom. — Respondeu Bianca, num tom leve, mas com o brilho de superioridade escondido no olhar.
Ayla manteve o sorriso.
— É verdade, o Gustavo sempre foi atencioso. Não apenas comigo, com todas as mulheres ele sabe ser um verdadeiro cavalheiro.
— Não ouça a Lalá, eu não sou assim. — Disse Gustavo depressa, tentando amenizar.
As palavras de Ayla saíram com doçura e leveza, como se fossem parte de uma brincadeira entre o casal.
Mas o sorriso de Bianca vacilou.
Thiago, percebendo o desconforto da mulher, pegou a garrafinha de molho de soja e, justo quando Ayla estendeu a mão para pegar o último pedaço de omelete, esguichou o líquido sobre ele.
A força foi tanta que o molho respingou na mão clara de Ayla.
— Thiago! O que é isso?! — Disse Gustavo, o rosto endurecendo.
Bianca se apressou em entregar um guardanapo a Ayla e, num tom baixo e firme, virou-se para o menino:
— Thiago, mesmo que já tenha comido, não pode desperdiçar comida. E ainda sujou a mão da sua mãe sem querer. Peça desculpas agora.
Thiago lançou um olhar de birra para Ayla e murmurou, contrariado:
— Desculpa.
Ayla limpou a mão com calma e levantou o olhar para o garoto e para Bianca.
Thiago, de queixo erguido, murmurava um pedido de desculpas sem arrependimento algum, enquanto Bianca falava num tom leve, evitando o ponto principal.
— Pronto, você já comeu. Volte para o seu quarto. — Disse Bianca antes mesmo que Ayla respondesse.
— Espere. — A voz de Ayla cortou o ar.
No momento em que Thiago virou para sair, ela se levantou, segurou o menino pelo braço e o puxou até a parede.
— Fique parado.
— Sua bruxa! Me solta! — Gritou Thiago, esperneando.
Mas Ayla já estava acostumada com as birras dele. Segurou-o com firmeza, torcendo os braços dele para imobilizá-lo, e pegou de um vaso próximo uma fina vara de junco.
Sem hesitar, desceu o golpe sobre ele.
— Aaaah! — O choro do menino ecoou pela sala, misto de dor e medo.
— Ayla! O que está fazendo? Ele já pediu desculpas! Vai educar a criança com violência? — Bianca se apressou em intervir, aflita.
— Professora Bianca, o Thiago é meu filho. Como mãe, é meu dever o educar. — Respondeu Ayla friamente, sem parar o movimento. — A senhora está com tanta pressa em defender... parece até que é a mãe verdadeira, não?
Cada palavra caía junto com o som do junco batendo, firme e preciso.
Bianca empalideceu. As mãos cerradas, as unhas cravadas na palma.
— Eu... eu só acho que ele ainda é pequeno... e que o erro não foi tão grave... — Murmurou, a voz trêmula.
— Erro pequeno não corrigido vira problema grande. — Respondeu Ayla, sem alterar o tom. — Eu não sou como a professora Bianca, que entende de pedagogia. Se eu não o colocar nos eixos agora, ele nunca vai me respeitar.
As palavras de Ayla a calaram por completo. Diante daquela frieza, Bianca ficou sem reação.
Gustavo também se mostrou surpreso. Ayla sempre fora rígida, mas nunca levantara a mão contra o menino.
Mesmo achando que Thiago passara dos limites, ele não suportou o olhar aflito de Bianca. Aproximou-se e segurou o braço da Ayla.
— Chega, já deu.
Ayla respirou fundo. De fato, depois de tantas varadas, parte da raiva que a sufocava começou a se dissipar.
Largou a vara no chão. Thiago correu imediatamente e se escondeu atrás de Bianca.
Bianca franziu a testa, contendo o fôlego, e apenas deu leves tapinhas no ombro de Thiago.
— Thiago, guarde bem o que eu vou dizer. Enquanto eu for sua mãe, vai me tratar com respeito. Se continuar sem aprender a respeitar os mais velhos, esta vara aqui não vai ter pena de você. — Disse Ayla, cada palavra firme, carregada de autoridade.
O tom era tão forte que até o menino parou de chorar, mas o sorriso dela permanecia tranquilo, quase sereno.
Gustavo ficou imóvel, sem saber o que dizer.
Ayla virou-se e saiu da sala de jantar com passos calmos, sem olhar para trás.
Instintivamente, Gustavo começou a seguir a Ayla, mas Bianca segurou sua mão.
— Gustavo... — Murmurou, a voz embargada.
Os olhos dela estavam cheios de mágoa.
Por anos, Bianca vivia segura do amor de Gustavo, confiante na cumplicidade que os unia. Sempre se mostrou gentil, compreensiva.
Mas agora Ayla ultrapassara todos os limites e Bianca já não conseguia suportar.
No começo, foi o avô de Gustavo quem decidiu separar os dois a qualquer custo.
Naquela época, Gustavo ainda cursava a faculdade e não tinha força para se opor.
Bianca quase perdeu o emprego e, pressionada por todos os lados, acabou deixando a carreira acadêmica. Foi assim que mudou de área e passou a trabalhar como professora de educação infantil.
Sem alternativas, Gustavo procurou uma saída e encontrou em Ayla o escudo perfeito.
Bianca chegou a perguntar por que tinha de ser ela.
Gustavo respondeu que, a princípio, escolheu Ayla pela aparência. — Ela é bonita. Se eu a levar para casa, meus pais vão acreditar na história. — Disse ele.
Mais tarde, depois de investigar um pouco mais, descobriu que Ayla era órfã, sozinha no mundo, sem família nem apoio. Além disso, era uma das melhores alunas do curso de Finanças, disputada por grandes empresas.
Ao se aproximar dela, ele ganharia uma parceira capaz de impulsionar a carreira dele.
Para tranquilizar Bianca, Gustavo se casou com ela em segredo pouco tempo depois de começar o namoro com Ayla.
Assim, mesmo que Ayla fosse apresentada como esposa, todo o patrimônio seria legalmente dividido com Bianca.
Ele também prometeu que, quando herdasse o controle dos negócios da família, tornaria pública a relação entre os dois.
Mas, entre as três pessoas, Ayla nunca passou de uma ferramenta útil e conveniente.
E agora, aquela ferramenta ousava se voltar contra Bianca. Bianca não conseguia aceitar.
Gustavo sentiu o coração apertar ao ver Bianca com os olhos marejados.
Ainda assim, sabia que não podia romper com Ayla naquele momento. Apenas abraçou Bianca com força, o cenho franzido, antes de se soltar e sair atrás da outra mulher.